Peça ensaística segunda:
“Ser culto es el único modo de ser libre”
José MARTÍ (1853-1895)
(4) Não se deve admirar, que o êxito contemporâneo da expressão “sociedade civil” esteja vinculado à forma como ela, deste modo, pode remeter para doutrinas e correntes éticas e políticas distintas. Antes de mais, se antolha oportuno, advertir, que o momento fundador das teorias da sociedade civil corresponde a segunda metade do século XVIII.
Se atribui, geralmente, o interesse para este conceito à “transição da sociedade aristocrática comercial”. De sublinhar, que o desenvolvimento do capitalismo, a escalada, em potência correlativa da burguesia têm por corolário o advento de uma esfera pública autónoma e a génese do Estado nação moderno e do indivíduo cidadão. E, retomando, por motivos óbvios a fórmula de MARX e ENGELS, a sociedade civil, enquanto tal, só se desenvolve com a burguesia.
Enfim, de sublinhar, com ênfase, que com o triunfo do que o influente cientista politico canadiano, CRAWFORD BROUGH MACPHERSON (1911-1987), autor da célebre obra: The Political Theory of possessive Individualism, Hobbes to Locke (1962), (ou seja do que ele denominou de “O individualismo possessivo”), se precisa a ameaça de uma atomização da Sociedade conducente a uma submissão dos seres ao seu interesse particular.
Neste contexto, se vê emergir uma reflexão sobre a possibilidade do advento eventual de uma ordem moral que faça de contrapeso aos riscos até anomia (ausência de organização legal ou natural/anarquia) e a instauração de uma “sociedade de estrangeiros”.
(5) Vale a pena, trazer aqui à colação as ideias enformadoras do quadro traçado e formulado pelo economista e filósofo escocês, Adam SMITH (1723-1790), que aponta para a existência de um eventual universo, onde reina a mão invisível do mercado e que só anima o interesse (evidentemente, dos indivíduos), universo esse que devia ser anulado por uma organização, que permite recuperar valores de civilidade. Donde, a multiplicação de discursos acerca da Sociedade civil que toma por tema a conexão problemática entre Estado e Sociedade, a questão que se prende com o público e, ainda com o papel das associações como lugar alternativo para a realização do bem comum.
Identicamente, a problemática da família (entendida como fundamento da comunidade ética da articulação possível entre esta última e o espaço do mercado livre).
De consignar, que todas estas interrogações formuladas se postam como núcleo central dos grandes textos consagrados à sociedade civil, que alimentarão a reflexão hegeliana, constituindo esta, em determinados aspectos, apenas uma reassunção, no âmbito do movimento dialéctico, que produz o Estado, como ele mesmo, intransponível.
(6) Pode-se questionar com o filósofo francês, Michel FOUCAULT (1926-1984), se um dos textos chaves “para compreender este movimento não constitui um Ensaio sobre a história da Sociedade civil, da autoria do filósofo e historiador escocês, Adam FERGUSON, conhecido, outrossim, como Ferguson of Raith (1723-1816), na medida em que se afigura como o exacto contrapeso das teses do seu contemporâneo”. O que é posto em causa, segundo ele, com a entrada em cena do homo oeconomicus é a concepção, até então dominante da “governamentabilidade” que se exerce, num espaço de soberania habitado por sujeitos jurídicos.
Porém, na monarquia de direito divino, o Soberano obtinha a sua legitimidade de Deus. Aplicava o seu poder aos seus súbitos, em virtude deste direito. Até então, apenas esta dimensão divina lhe permanecia impenetrável. Quando se impôs a figura de sujeito económico, uma enorme transformação se produziu. A arte de governar, até aqui limitada ao domínio jurídico, deveu se desenrolar, num espaço económico. Ora, este último obedece à mão invisível do mercado. Eis porque, neste caso, o soberano se encontra despojado, pois algo escapa à sua influência.
Lisboa, 11 Maio 2010
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo)
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