Socorro-me deste antigo título de uma secção das Selecções do Reader’s Digest para abordar o seguinte assunto:
Carlos Gervásio Tavares e Amílcar Botelho Santos, cada um por sua vez, enviaram-me um email verberando o conteúdo do texto satírico publicado aqui em baixo sob o título "Cabo Verde".
Carlos Gervásio pede a publicação do que escreve, mas há-de desculpar-me não lhe satisfazer o pedido pois em cada três palavras, duas são obscenidades contra o autor da sátira.
Já Amílcar Botelho é um pouco menos desbocado, mas como não se pronuncia sobre se devo ou não dar à estampa a sua prosa, limito-me a dizer que, no entanto, acaba por cometer o mesmo erro que Carlos: ambos têm imensa dificuldade em compreender o papel da sátira e - longe de admitirem que o texto de Emmanöel Karl D'Oliveiren é oportuno e desempenha em pleno a sua função – sentiram-se profundamente ofendidos com o "turista bandido" que resolveu falar tão mal da sua querida Praia.
É preciso lembrar aos dois (e a mais uns quantos que têm a mesma posição mas não a manifestam) que a sátira é um género que usa uma linguagem corrosiva e implacável, sendo utilizada por aqueles que demonstram a sua capacidade de indignação, de forma divertida, para fulminar abusos; castigar, rindo, os costumes; denunciar determinados defeitos; melhorar situações aberrantes; vingar injustiças… Umas vezes é brutal, outras mais subtil. E tem por finalidade despertar consciências para certas anormalidades sem nunca pretender ofender seja quem for.
O literato brasileiro, Roberto de Sousa Causo é claro quando escreve:
«A sátira é um género relativamente difícil. Sua estratégia é levantar o que há de bizarro ou censurável na sociedade, retirando o leitor do "conformismo" de pensar que a realidade em que vive é "normal" e inalterável. Os excessos são bem vindos nessa tarefa, e as melhores sátiras são as que lidam melhor com uma "economia de excessos" que incluem linguagem, enredo, e caracterização dos personagens.»
Helena Vasconcelos, por sua vez escreve:
«Todos nós sabemos que não há nada como o riso para enfrentar os momentos mais terríveis da vida e da História, uma vez que a sátira é a única forma inteligente de lidarmos com a tragédia.»
Ora bem, acho que me cumpre dizer agora o que penso do texto em causa e porquê o publiquei.
Penso que o texto do Emmanöel cumpre na perfeição a função de denúncia de várias situações anormais que constituem a “normalidade” da vida na cidade da Praia e que se desejaria que fossem alteradas:
1. É verdade a actividade no mínimo curiosa dos “bagageiros” no aeroporto da Praia.
2. É verdade que as bagagens costumam sofrer atrasos significativos na chegada; por vezes três a quatro dias (o que é muito para quem vai, por exemplo, passar uma semana).
3. É verdade que as estradas são más; que há carros caros e em bom número; e que o fosso entre “ricos” e pobres é gritante.
4. É verdade que as lojas chinesas estão em toda a parte e que os produtos chineses sendo baratos são também facilmente perecíveis.
5. Toda a gente sabe que há bares e cafés de todo o género e com todos os graus possíveis de higiene e que há funcionários públicos que os frequentam regularmente durante as horas normais de serviço.
6. O furto por esticão é frequente e às vezes a vítima é maltratada.
7. Os “vendedores ambulantes”, mais propriamente os chamados “mandjacos”, pululam na cidade e fazem a cabeça em água a qualquer pessoa com ar de turista que tenha a infeliz ideia de se sentar numa esplanada ou de ir à praia. Vendem de tudo: canivetes, óculos, imitações de relógios de marca, etc., etc..
8. O tratamento do lixo, quer pelas autarquias, quer sobretudo pela população de Santiago (aqui não é só na Praia), é extremamente deficiente. A paisagem do lado esquerdo da estrada que liga a Praia a São Domingos é um exemplo acabado de agressão ecológica com a sua exposição monumental de embalagens e sacos de plástico de todas as cores e tamanhos, atirados ao vento, cobrindo a paisagem, presos contra os ramos de milhares de arbustos espinhosos, numa longa extensão de quilómetros.
Se para dizer estas verdades Emmanöel resolveu usar a sátira, que tem uma eficácia terrível – como, aliás, estamos a ver pelas reacções havidas – acho que escolheu bem esse meio eficaz de se fazer ouvir por quem ele pretendeu interpelar; e foi por isso e para isso mesmo que esse texto foi aqui publicado.
Àqueles que o não compreenderam e àqueles que teimam em não compreendê-lo só me resta desejar uma boa digestão. E lembrar-lhes uma coisa: um pouco de frieza na análise pode fazer muito pela inteligência das pessoas. Não vale a pena praguejar. Essa atitude é própria de mentes primárias que se manifestam em função da emoção em vez da razão.
Sendo o texto satírico em causa datado do ano de 2003 é natural que esteja desactualizado.
Talvez a cidade da Praia de hoje seja uma autêntica Singapura.
Quem sabe?!...