Há poucos dias, numa daquelas "sondagens" que às vezes fazemos a amigos e colegas, eu "provocava-os" dizendo-lhes: «então, já sabes, qualquer dia Cabo Verde será Europa». Invariavelmente desaprovavam a ideia negando qualquer identidade a Cabo Verde para tal merecimento. Confrontados com o facto de a Turquia se preparar para fazer parte da União Europeia, todos diziam mais ou menos isto: «mas a Turquia é Europa» (!); tendo mesmo alguém dito: «a Turquia está mesmo aqui ao lado(?) e está "pegada" a nós».
Avaliem isto como quiserem.
O meu contra-argumento foi quase sempre este: olha que a Turquia fica na Ásia e está um pouco longe, mas se o argumento é esse de «estar pegado» então a China também está pegada a Portugal. E por baixo do mar - tudo está pegado a tudo afinal.
É isto: os argumentos de rejeição expendidos por aqueles cidadãos assumiam um carácter disparatado e revelavam não assentar em qualquer conhecimento minimamente aproximado da realidade.
Tenho para mim, até, que aqueles argumentos não valem por si. Que não são genuínos e verdadeiros. E que não querem exprimir o que literalmente exprimem.
Penso que aqueles argumentos escondem um outro argumento - o verdadeiro argumento - que não convém revelar: o que se baseia na xenofobia e no racismo larvar ainda há pouco tempo denunciado por alguns estudos sérios já divulgados.
Sendo importante a opinião de qualquer cidadão sobre propostas deste tipo é preciso, por isso mesmo, deixar bem claro que o que se propõe é a adesão de Cabo Verde à Europa e não apenas a Portugal. É que este ponto é muito importante e deve ficar bem claro: não se propõe a Portugal que "aceite" Cabo Verde como ilhas adjacentes (uma espécie de uns Açores situados um pouco mais a sul). A proposta é dirigida à União Europeia e exprime o desejo de Cabo Verde, integrando a Macaronésia (o conjunto das ilhas atlânticas dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), contribuir para a consolidação desse espaço geoestratégico situado entre o bloco europeu e o bloco americano. É tão simples ou esquisito quanto isso.
Trata-se da proposição de um negócio político arriscado que pode beneficiar a Europa e Cabo Verde. Não se trata de um pedido de esmola ou da colocação de Cabo Verde em saldo.
Estou em crer que a adesão, a fazer-se num futuro ainda longe dos nossos dias, se fará mais por pragmatismo político, por geoestratégia de blocos político-militares, por interesses comerciais ou qualquer outro motivo ou razão de Estado do que por identidade cultural, por amizade, por passado histórico comum, ou qualquer coisa similar.
Cabo Verde, ao pretender aderir à Europa, terá bem presente que essa adesão será uma adesão de conveniência mútua: uma adesão que à Europa convirá na perspectiva da formação futura de um bloco político-económico-militar que se diferencie dos Estados Unidos; e que a Cabo Verde convirá na perspectiva do desenvolvimento industrial, social e humano que inevitavelmente lhe acontecerá.
É um assunto que os políticos da ambos os lados (Cabo Verde e União Europeia) saberão tratar com o pragmatismo habitual que se põe na abordagem dessas questões relegando para o baú das tralhas os maus humores, as xenofobias e os racismos vários dos povos.
E faço aqui um parêntesis para dizer que até hoje conheci apenas dois povos que na sua grande maioria não são xenófobos ou racistas. São eles: o povo brasileiro e o povo cabo-verdiano.
Mas arrumar o racismo e a xenofobia no baú das tralhas não significa esquecer que existem. É bom que esta realidade escondida seja sempre tida em conta quando lidamos uns com os outros, quando pedimos opinião, discutimos assuntos de algum melindre ou propomos reflexões sobre temas, como por exemplo o da integração de Cabo Verde na Europa, para, ao mesmo tempo que discutimos, podermos combatê-la e tentar eliminá-la pois é um cancro que rói os espíritos e os diminui significativamente.
Porque sabemos que os políticos de topo europeus dão lugar ao pragmatismo político e livram-se de preconceitos quando negoceiam;
porque sabemos que os verdadeiros intelectuais europeus ultrapassaram de há muito a fase da "superioridade ocidental" sobre os outros povos (e tem piada que Cabo Verde é ocidente e pertence ao hemisfério norte) e olham para o resto do mundo com natural espírito de equidade;
achamos que vale a pena levar avante este discussão, tentando envolver nela os políticos e os intelectuais de ambos os lados (Europa e Cabo Verde) pois só com os contributos destes dois mundos será possível fazer ver a todos o interesse mútuo da adesão de Cabo Verde à União Europeia.