Peça Ensaística Décima Primeira:
“Ser culto es el único modo de ser libre”
José MARTÍ (1853-1895)
“[…] A realidade psíquica é uma forma de existência particular,
que não é preciso confundir com a realidade material”.
Sigmund FREUD (1856-1939)
In: A Interpretação dos Sonhos.
“A dialéctica não toma férias: as coisas possuem o seu nome e os fenómenos a sua Lei”.
“L’explication des phénomènes pathologiques doit être déduite des mêmes lois que régissent les phénomènes normaux de la vie » : Claude BERNARD, In Introduction à l’étude de la médecine expérimentale.
Et pour cause : O Terapêutico (quiçá) não é (sempre) médico?
(1) Na verdade, esta vetusta história do sujeito/indivíduo ético no Ocidente percorre o conjunto da obra do filósofo francês, Michel FOUCAULT (1926-1984), como percorre (identicamente), as obras do filósofo alemão, Martin HEIDEGGER (1889-1976) ou da pensadora norte-americana de origem alemã, Hannah ARENDT (1906-1975).
(2) Por seu turno, a instrumentação do vivo colocada sob a tutela de um “taylorismo” médico faz a saúde (voar em estilhaços). Ela medicaliza (de modo excessivo), o sofrimento psíquico, conduzindo a uma profissionalização da ética, à uma avaliação sanitária dos comportamentos, à transformação do paciente em consumidor (conhecedor) e em “bebé sábio”. Inaugura (outrossim), a angústia das solidões singulares naufragadas na “massa”, na homogeneização do vivo biológico dos “plurais singulares” votados em se tornar peças destacadas da espécie. Deste modo, a prática médica se transforma em actividade de engenheiro e queda na objectivação do “cuidado de si”, no “ubuesque” e no grotesco da Psiquiatria e da Psicologia contemporâneas.
a. As práticas médicas actuais, na sua subordinação extrema à técnica, ao económico e ao social conduzem à inspecção da Natureza e do Humano como fundos (económica e socialmente) exploráveis (indefinidamente).
b. Demais (e por outro), uma tal inspecção do Vivo e do Humano, como fundos exploráveis produz um triplo deficit: Ético, político e subjectivo.
Posto isto, vamos estudar a problemática que enforma o Deficit ético, no âmbito da Organização do Vivo:
(A):
Na verdade, o Deficit ético que tende a fazer passar o conhecimento técnico-científico do Vivo Humano (sob as forquilhas caudinas de uma pura lógica racional), pertence à condição do Homem moderno. A Ética é o Sagrado! Por sua vez, a experimentação e a instrumentação do Vivo renegam estes efeitos de revelação sobre o ser que a enfermidade (nada menos que) o cuidado representava aos olhos dos médicos antigos.
Com efeito, se a Ética médica aparece (presentemente) como uma especialidade quase profissional, referindo-se aos bios técnicos da equipa de cuidados para legitimar um certo número de decisões médicas, é (precisamente), porque a ética se encontra em vias de desaparecimento, no seio (mesmo), do Acto médico. Este Deficit ético constitui (identicamente), um deficit simbólico (encarado do ponto de vista do valor e do sentido), que assumem a enfermidade e o cuidado (respectivo), tanto, no plano colectivo, como no nível singular.
(B):
Esta dessacralização do conceito de Saúde, esta perda da função ética e simbólica da enfermidade possui uma longa história. Esta história se constituiu, no decurso do desenvolvimento da racionalização científica do discurso médico e da experimentação biológica.
De facto, esta perda do sentido da Vida (no seio da medicina científica) e da gestão moderna do Vivo pertencem à condição do Homem moderno. Para as medicinas antigas, mesmo quando (elas) se reclamavam de uma Medicina materialista (por exemplo, com GALENO), jamais menosprezavam incluir na observação clínica os sonhos, os oráculos, as manifestações reencontradas no percurso que conduzia à cabeceira dos pacientes. Em suma: O dizer do enfermo e (não unicamente), o dito da enfermidade!
(C)
Se para os Egípcios, a enfermidade aparece como um mal e a Saúde como um bem, convém precisar que estes termos são a aceitar na sua dimensão metafísica (muito distanciados) das nossas concepções modernas de fruir. De sublinhar (com ênfase), que para os Egípcios, a Saúde e a enfermidade advêm como epifanias das forças (que organizam) o Cosmo.
Sim (efectivamente), elas são a expressão, a parada insignificante de uma vitória das forças divinas do Bem contra as do Mal (conflito sagrado, leia-se, outrossim) do qual todo o Cosmo constitui o Teatro e o Corpo Humano, representando o microcosmo. E, comungando (crítica e pedagogicamente) com o médico/escritor francês, Marcel SENDRAIL (1900-1976), na verdade: “la maladie ne prend pas sa source dans la vie intérieur du patient. Elle s’impose à lui du dehors. La mort n’éclôt pas spontanément dans des entrailles coupables. Elle équivaut à un meurtre ». E, para uma melhor elucidação desta temática, consultar a obra do autor citado: Histoire culturelle de la maladie (1980).
(D)
Já na Cultura Helénica, a Noção de Saúde se encontra (completamente), colocada, numa dependência ética (leia-se inserta no Belo). E, no atinente à harmonia apolínea, Platão no Banquete (pela boca de ERYXIMEQUE), define a Medicina como a “Ciência dos eróticos do corpo”. De anotar, que segundo o psiquiatra, Jacques LACAN (1901-1981), esta definição platónica da Medicina convém (perfeitamente) à Psicanálise (com a condição de) inclinar o sentido do termo “erótico” para o campo das pulsões sexuais.
(E)
Por seu turno, na Medicina Greco-romana, a enfermidade/doença provém de um desequilíbrio da harmonia ética e estética das combinações formais da Natureza, visto que o equilíbrio constitui o próprio símbolo da Felicidade, a qual não se diferencia da Saúde. As Escolas médicas gregas e romanas são múltiplas, porém (elas), se revelam todas solidárias de uma Filosofia da Saúde ou da cura, que participa de uma Ética e de uma Estética da “prática de si”, do “cuidado de si”.
(F)
Prosseguindo, o nosso Estudo, temos a referir, que, no âmbito dos Pensamentos (semita, babilónico e cristão), a enfermidade se confunde com o Mal. Assume um valor de Verdade divina e de eleição da condição humana. Bem entendido, de modo (assaz dissemelhante), para cada uma destas culturas, a Saúde se encontra em todos os casos colocada sob um determinismo sagrado, cujo sofrimento só constitui a revelação individual e/ou colectiva. Nesta perspectiva, o sofrimento é (fundamentalmente), paixão e (nesta qualidade), todo o sofrimento estabelece com a paixão cristã uma filiação mítica, imaginária e simbólica. Ela revela e consagra a existência e a expiação de uma falta originária, de uma decadência narcísica da espécie.
O que significa (em harmonia), que (ela) fabrica a ilusão e a nostalgia de um Paraíso perdido (isento de sexo, de morte e de trabalho). O sofrimento, uma vez instalado (no cerne da condição humana), o discurso cristão lhe confere um valor divino, ético e sagrado. Na mística, o sofrimento é fruição para o Outro, Ele se revela no seu valor significativo, electivo, sacrificial. Este discurso da Paixão constitui a arqueologia de saber sobre o desejo e o inconsciente no íntimo do enfermo. Enfim (na verdade), a experiência mística inscreve a participação da instância moral (particularmente), do sentimento inconsciente de culpabilidade, na economia subjectiva e inter-subjectiva. É, neste sentido (aliás), que falaremos de Ética.
Lisboa, 14 Agosto 2011
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo).