terça-feira, 24 de agosto de 2010

Peça Ensaística Trigésima Sexta, no âmbito de

Na Peugada de NOVOS RUMOS:

Acerca da Conexão Comunismo/Utopia:
Uma Leitura oportuna, por motivos óbvios!...

Ser culto es el único modo de ser libre
José MARTÍ (1853-1895).


                                                NP:
                                                                Vivida, pensada, sonhada, tal é a história do Comunismo, cujo segredo da longevidade ideológica parece permanecer nesta super-posição do real e do imaginário, se assumindo (como um vazio enigmático), abandonado aos “caprichos” da Utopia. Transformada num verdadeiro local ou casa de arrumações do inexplicado da aventura comunista, no século XX pretérito, a expressão Utopia” aparece, todavia, até certo ponto, anacrónica, no momento do balanço das recaídas deste sistema sobre as sociedades e os Homens (a quem dizem respeito), assaz demasiado real para o confundir com o fantasma ou a ficção.

(I)
                Tendo em conta o arrazoado (acima expendido) vamos concentrar, por imperativo de ordem pedagógica, neste nosso Estudo ensaístico, na problemática, que se prende com a natureza do Elo/Vínculo existente entre as duas expressões: Comunismo e Utopia.
(a)      Assim, o primeiro sinal de referência significativo, no âmbito da conexão Comunismo/Utopia (que, ipso facto, se nos afigura relevante abordar), reside na promessa de perfeição, oriunda do corpo religioso judaico cristão para se tornar doutrina política, após a sua passagem pelo filtro da utopia. De feito, no século XVI, pela primeira vez, desde a Antiguidade, a promessa desceu a terra, transportada pelos homens, por intermédio dos escritos utópicos. Eis que, então, estas novas ferramentas do político, permitem confrontar a sociedade real com o seu invés perfeito, um universo fictício completamente depurado dos seus males históricos. Donde, ao descrever, ao mínimo pormenor, uma Sociedade feliz denominada UTOPIA, MORE conseguiu, deste modo, com êxito, à tornar verosímil e, dentro de pouco tempo, desejável, uma Organização Social, até então impensável, deixando, na peugada e esteira da História uma orientação indelével, uma visão de felicidade colectiva, uma viva Memória do Futuro.
(b)      Já o segundo sinal de referência remete para a instrumentalização das rejeições e dos desejos, método assaz típico da Utopia, apto a servir os políticos contestatários para apreender o objecto de menosprezo da sociedade real. Com efeito, por razões óbvias, ninguém pode negar a eficácia do procedimento utópico, que visa a racionalizar os comportamentos, intervindo sobre os espíritos e isto pela única sugestão de um algures fascinante, uma montagem entre o real e ficção magnificamente eficaz para estigmatizar o sistema implantado e abri-lo sobre possíveis. Importante sublinhar, que estes dois sinais de referência, a promessa e o método, assumem, eloquentemente, o porquê e o como de um CONÚBIO FUSIONADO entre o Pensamento Racional e o Imaginário.

(II)
                Transformado género da moda, desde o século XVII, o Romance utópico devia servir a uma plêiade de Pensadores, designadamente:
                --- Por um lado, políticos decididos em aproximar, sempre, cada vez mais, a Promessa da Realidade, nomeadamente o dominicano calabrês, CAMPANELLA e, por extensão, a sua interessante Obra (Cité du Soleil, 1623) e, outrossim e, ainda MORELLY, autor enigmático do Code de la nature (1755);
                --- E, por outro: Puros Filósofos, designadamente:
                                VOLTAIRE (1694-1778) e o seu Eldorado (1747) ou SADE (1740-1814) e a sua célebre L’île du roi ZAMÉ (1785).
                De salientar, que estes dois últimos se limitaram a dessacralizar os fundamentos de uma Sociedade feudal em mutação, após tê-la, colocada na situação de acusada graças aos depoimentos de hipotéticos viajantes regressados eufóricos de um País (soit disant ditoso), porém demasiado afastado da Realidade. Quiçá, daí, com certeza, a confusão entre Utopia e Fantasia filosófica!...
                No entanto, globalmente, entre o século XVI e o século XVIII, a Utopia permanece fiel à matriz de origem (UTOPIA), até a sua entrada, em sintonia, com o Grande Evento/Acontecimento, estamos a referir, obviamente à Revolução Francesa.

(III)
                Mercê destes anos revolucionários, os adeptos daSanta Igualdade”entre os quais, GRACHUS BABEUF (pseudónimo do revolucionário francês, François Noël BABEUF, 1760-1797), se notabiliza, na qualidade de verdadeiro percursor, dizíamos, extraíram na UTOPIA a sua dinâmica de acção e a sua força de fascinação para engendrar projectos alternativos em que o Imaginário parece ter sido evacuado, simultaneamente que a Ficção.
                Ora a atracção exercida pelos diversos Manifestos editados na época, reside fundamentalmente na sua construção utópica identificável em catálogos de cláusulas e de normas cuja a ordenação global permite compulsar um sistema social, ainda, jamais enxergado, apresentado, sempre como o invés positivo do presente negativo.
                Eis porque, no âmbito desta dinâmica e perspectiva, os primeiros actores e pensadores comunistas tiveram êxito ao insinuar os seus passos nos dos revolucionários, transmutando a promessa numa doutrina virada para a modernidade, no entanto, irremediavelmente congelada no seu conteúdo de verdade: Sim, efectivamente, a designação do mal supremo e os seus meios de destruição.
                Enfim e, em suma: Da Utopia de MORE e dos seus derivados, estes neófitos retiveram, com efeito, o essencial. Ou seja: A desgraça dos homens reside integralmente no enriquecimento individual, fonte de cobiça e de corrupção, uma enfermidade a erradicar pela obstrução definitiva dos múltiplos canais da sua formação e da sua reprodução.

(IV)
                Se dermos ao trabalho de seguir os interessados, militantes e ideólogos comunistas, chegaríamos a conclusão acertada, que, estes anos (charneiras), teriam, obviamente permitido a Doutrina, se libertar da sua ganga quimérica para se ancorar, num robusto Evento/Acontecimento, progressivamente legitimado pelo conhecimento (após achega decisiva oriunda do Socialismo científico) e, por conseguinte, liberta da Utopia da qual ela apenas teria preservado o princípio Esperança, “le paysage du souhait”, segundo a expressão do filósofo marxista alemão, Ernst BLOCH (1885-1977).
                Demais, não há dúvida nenhuma, que é um facto óbvio, que a teorização da causa do mal e dos meios de passagem para a Cidade Ideal permitiu a reconciliação entre o conteúdo de verdade da promessa e a realidade dos factos, tendo sido, a despeito de tudo, o fundamental do esquema utópico preservado. O Comunismo, enquanto ideologia, doutrina e projecto, por seu turno, efectivamente, jamais, se desembaraçou da sua matriz fecunda. Aliás, preservou, intactas, a substância ideal e a instrumentalização estratégica da negação global e do desejo de perfeição Social.

Lisboa, 23 Agosto 2010
KWAME KONDÉ:
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo).