“Ser culto es el único modo de ser libre”
José MARTÍ (1853-1895)
(A)
(1) Com efeito, não há dúvida nenhuma, que o Homem é eminentemente um ser de Cultura. O longo processo de hominização principiou, já lá vão, mais ou menos quinze (15) milhões de anos. Consistiu fundamentalmente em passar de uma adaptação genética, no ambiente natural, para uma adaptação cultural.
(2) No decurso desta evolução cujo corolário foi o advento do Homo Sapiens sapiens, o Primeiro Homem, se operou uma colossal regressão dos instintos, “substituídos” progressivamente pela Cultura, isto é, por esta adaptação imaginada e controlada pelo Homem que se revela muito mais funcional que a própria adaptação genética, porquanto muito mais flexível e mais fácil e mais rapidamente transmissível. De feito, a Cultura permite ao Homem, não apenas se adaptar ao seu meio, outrossim, porém, adaptar este à si próprio, às suas reais necessidades e aos seus projectos respectivos, em outras palavras (e, para melhor dizer), a Cultura se torna possível a transformação da Natureza.
(3) Demais, se todas as “populações” humanas possuem o mesmo stock genético, se diferenciam pelas suas escolhas culturais, cada uma, inventando soluções originais para os problemas que se lhes colocam. Todavia, estas diferenças não são irredutíveis umas às outras, visto que, tendo em conta, a unidade genética da Humanidade, representam aplicações de princípios culturais universais, aplicações estas susceptíveis de evoluções e, identicamente de transformações.
(4) Eis porque, no âmbito desta óptica e perspectiva, a Noção de Cultura se assume, por conseguinte, como o utensílio adequado para pôr termo às explicações naturalistas dos comportamentos humanos. A Natureza, no Homem é integralmente interpretada pela Cultura. As diferenças que poderiam parecer, mais vinculadas à propriedades biológicas particulares, como, por exemplo, a diferença dos sexos, não podem elas mesmas, se observar jamais “à l’état brut” (natural), visto que, por assim dizer, a Cultura se apodera disso, imediatamente: a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas Sociedades Humanas resulta fundamentalmente da Cultura. E, eis porque, varia de uma sociedade para a outra.
(B)
Os vocábulos possuem uma história. Outrossim, em certa medida, os vocábulos fazem a história. Assim sendo, no atinente a todos os vocábulos, isto se afigura, particularmente verídico, no caso do termo “cultura”. O “ peso dos vocábulos se encontra carregado desta conexão à história, a história que os fez e a história que contribuem para fazer.
Os vocábulos aparecem para responder à determinadas e certas interrogações, à certos e determinados problemas que se colocam em períodos históricos determinados e em contextos sociais e políticos específicos. Donde e daí, denominar é, simultaneamente colocar o problema e já resolvê-lo, de uma certa forma.
A invenção da Noção de Cultura é, em si mesma, reveladora de um aspecto fundamental da Cultura no seio do qual, pôde se fazer esta invenção. Inversamente, é assaz significativo que o vocábulo “cultura” não tenha equivalente na maioria das línguas orais das sociedades, que estudam habitualmente os etnólogos. Isto não implica, evidentemente que estas sociedades não possuem “cultura”, conquanto a elas, não se colocam, a questão de saber se elas possuem ou não uma cultura e ainda, muito menos, de definir a sua própria cultura.
Enfim e, em suma: A evolução de um vocábulo depende, com efeito, de numerosos factores, que não são todos de ordem linguística. A sua herança semântica cria uma certa dependência relativamente ao passado, nos seus usos contemporâneos.
(C)
--- No decurso do século XIX, a adopção de “démarche positive”, no âmbito da reflexão acerca do Homem e da Sociedade desemboca na criação da Sociologia (ciência que se dedica ao estudo dos fenómenos sociais) e da Etnologia (ciência que estuda os povos integrados no contexto dos seus agrupamentos naturalmente constituídos) como disciplinas científicas.
A Etnologia vai tentar outorgar uma resposta à prístina questão que se prende com a definição da Diversidade Humana. Ou seja: como pensar a especificidade humana, no âmbito da diversidade humana.
Importante sublinhar, com ênfase, que os fundadores da Etnologia científica partilham todos um postulado idêntico: o da unidade do Homem, herança da filosofia das Luzes. Para eles, a dificuldade estará, por conseguinte, no pensar a diversidade na unidade.
Todavia, à questão assim colocada eles não entendem que se satisfaça com uma mera resposta biológica. De feito, se reclamam fundadores de uma nova ciência para trazer uma outra explicação à humana diversidade que a da existência de “raças” dissemelhantes. Deste modo, duas (2) vias vão ser exploradas, simultânea e conjuntamente pelos etnólogos:
a) A que privilegia a unidade e minimiza a diversidade, reduzindo-a à uma diversidade “temporária”, segundo um esquema evolucionista;
b) E a que, pelo contrário, outorga toda a sua importância à diversidade, se envidando em demonstrar que não é contraditório com a unidade fundamental da Humanidade.
Eis porque, no âmbito desta dinâmica epistemológica, um conceito vai emergir como utensílio privilegiado para pensar este problema e explorar as dissemelhantes respostas possíveis: Eis nos, então ante o advento, em força do lexema “Cultura”, aliás, melhor dito, o vocábulo se encontra a pairar no ar do tempo, porém é utilizado, ordinariamente, tão bem, como isto foi visto em França como na Alemanha, num sentido normativo. De sublinhar, que os fundadores da Etnologia vão lhe outorgar um conteúdo puramente descritivo. Já não se trata para eles, como para os filósofos, de asseverar o que deve ser a “Cultura”, sim, descrever o que ela é, tal como aparece nas Sociedades Humanas.
Todavia, a Etnologia, nos seus inícios não escapará completamente a toda a ambiguidade e não se conformará facilmente com todo juízo de valor, nem de toda implicação ideológica. No entanto, o facto de se tratar de uma disciplina em vias de constituição, que identicamente não podia exercer uma influência determinante no campo intelectual da época, permitiu que a reflexão acerca da questão da cultura escapasse, em grande parte à problemática do debate apaixonado que opunha “cultura” e “civilização” e preservasse uma relativa autonomia epistemológica.
Enfim e, em suma: A introdução do conceito de Cultura far-se-á com um êxito desigual nos dissemelhantes países, onde nasce a Etnologia. E, por outro lado, não haverá entendimento entre as dissemelhantes “escolas” acerca da questão de saber se é necessário utilizar o conceito no singular (a Cultura) ou no plural (as culturas), numa acepção universalista ou particularista.
(D)
Na verdade, se o conceito, ou pelo menos, a ideia de cultura se impõe, a investigação sistemática sobre o funcionamento da cultura, em geral, ou das culturas, em particular não se desenvolve, de modo tão importante em todos os países, onde começa levantar voo a Etnologia. É nos Estados Unidos da América do norte que o conceito recebe o melhor acolhimento e, é no seio da Antropologia norte-americana que vai conhecer o aprofundamento teórico mais notável e relevante. Neste contexto científico particular, a investigação, no âmbito da questão da ou das cultura (s) é veridicamente cumulativa e não conhecerá, ipso facto, o real declínio. Isto é, de tal modo, verídico que falar de Antropologia norte-americana ou de “Antropologia cultural”equivale praticamente o mesmo. A consagração científica da “Cultura” é tal nos Estados Unidos, que o termo foi adoptado rapidamente na sua acepção antropológica por disciplinas afins, designadamente a Psicologia e a Sociologia em particular.
Eis nos, então, ipso facto, ante o triunfo indiscutível do Conceito de Cultura.
(E)
Vale a pena, sublinhar que a Investigação científica jamais se efectiva, completamente independente do contexto no qual se efectua, obviamente. De feito, o contexto nacional americano é assaz específico, comparado com os contextos nacionais europeus. Os Estados Unidos se assumem eles mesmos, desde sempre, como um País de imigrantes de dissemelhantes origens. Nos Estados Unidos, a Imigração, não só, funda como precede outrossim, por conseguinte, a Nação, que, por seu turno, se reconhece Nação pluriétnica.
De feito, o mito nacional norte-americano, consoante o qual a legitimidade da Cidadania está quase vinculada à Imigração – o Americano é um imigrante ou um descendente de imigrantes – está no fundamento de um modelo de integração nacional original que admite a formação de Comunidades étnicas particulares. A pertença do indivíduo à Nação vai, frequentemente, a par com a participação reconhecida à uma comunidade particular. Eis porque, a identidade dos Americanos foi qualificada por alguns de “identidade a traço de união”. Donde, pode-se ser, com efeito, “Ítalo americano”; “Polaco americano”, “Judeu americano”, etc. etc. E, deste modo, resulta, obviamente o que se pôde denominar como um “Federalismo Cultural”, servindo-se da consagrada expressão da autoria da socióloga francesa Dominique SCHNAPPER (n-1934), pois que permite a expressão pública das culturas particulares, que não são, todavia, uma pura e mera reprodução das culturas de origem dos imigrantes, Sim, efectivamente a sua adaptação e a sua reinterpretação respectiva em função do novo Ambiente Social e Nacional. De anotar, entretanto, que o mito americano leva a considerar os Índios (leia-se, os Ameríndios), que não são, por definição, imigrantes e os Negros cuja a imigração forçada, como não sendo Americanos à part entier.
Demais, pelas mesmas razões históricas, a Sociologia norte-americana recente privilegia a recherche sobre o fenómeno da imigração e das relações interétnicas. Os sociólogos da Universidade de Chicago, primeiro centro de ensino e de difusão da Sociologia nos Estados Unidos, colocam no cerne de suas análises a questão dos estrangeiros na cidade, contribuindo, deste modo, para promover um campo de estudo fundamental para as sociedades modernas.Com efeito, o contexto, assaz peculiar e sui generis dos Estados Unidos favoreceu uma interrogação sistemática no atinente às diferenças culturais e, outrossim acerca dos contactos entre as culturas.
Lisboa, 28 Março 2010
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo)
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