Do sempre fixe, Djibla (Daniel Mascarenhas), recebi este interessante e fundamentado artigo da autoria do nosso amigo comum Dr. Jorge Morbey, ex-adido cultural na Embaixada de Portugal na China, publicado na revista Hoje Macau, de Agosto.
MACAU 2008 - A LUSOFONIA EM FESTA
Radica na mais antiga tradição católica lusa o calendário de festas e romarias que assinalam a superação de crises originadas pela guerra, pela doença, por calamidades naturais, etc., cuja celebração inclui manifestações religiosas e profanas.
Os festejos anuais da Lusofonia em Macau, se bem que destituídos de programação de índole religiosa, parecem poder entroncar nessa mesma tradição. O ambiente de festa e alegria não deve, porém, ser impeditivo de alguma reflexão produzida entre os cidadãos originários dos países que têm o Português como sua língua oficial.
A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial e que assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador das antigas colónias. Entre si e com as respectivas metrópoles do passado. Nesses espaços procura decantar-se a História de episódios de força e opressão, transformar em amigos anteriores inimigos, substituir a violência pretérita pelo diálogo, suprir a antiga exploração pela moderna cooperação.
Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles existem como áreas de catarse ou expiação. E não parece que possam ir mais além, tendo em conta os fortes compromissos existentes entre os países europeus, no seio da União Europeia, que inviabilizam irremediavelmente a participação plena dos países membros da UE em qualquer outra “Comunidade de Povos”. Atente-se no modo como o Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles, apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona.
O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, foi a revalidação entre as potências coloniais europeias dos seus interesses de exploração em África, formalmente assumida na Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso colonial europeu, ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da capacidade que se lhe exigiu, em resultado da então nova regra colonial europeia que determinava, sem apelo nem agravo, a ocupação efectiva dos territórios africanos.
O anticolonialismo do Século XX e a descolonização por ele determinada foi um facto sem antecedentes na História da Expansão Europeia porque se centrou no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados.
O Século XIX assistiu à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos e o Século XVIII foi o tempo da independência das colónias inglesas da América do Norte, à excepção do Canadá para onde se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica e que ficaram conhecidos por United Empire Loyalists.
A independência das colónias americanas foi um fenómeno sui generis, uma vez que os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários mas entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido. A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico, mas unidos pela mesma língua.
O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo cujo exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos e, em várias partes, foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses. A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, além de Portugal e de Espanha, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero e teve por consequência o esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano.
A hegemonia portuguesa no Índico e no Pacífico durou perto de um século e foi profundamente abalada com a chegada em força dos Holandeses àqueles mares. A transferência de domínios entre países europeus – de Portugal católico para a Holanda protestante, principalmente - constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.
Com a substituição da dominação portuguesa pela holandesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade própria que perdurou até aos nossos dias e que assenta em dois pilares principais: a religião católica e a língua crioula.
A religião católica fora trazida pelos portugueses, directamente de Portugal ou através de Goa – a Roma do Oriente. Convertidos ou nascidos nela, com ela haviam de morrer, geração após geração de euro-asiáticos de origem portuguesa.
A sua língua crioula era a língua portuguesa na formulação que lhe garantira o estatuto de língua franca no litoral da Ásia e da Oceania, desde o Século XVI até à sua substituição pelo inglês, no Século XIX. Holandeses, ingleses, dinamarqueses e franceses não podiam prescindir de um “língoa” [intérprete] a bordo para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que era - nada mais, nada menos – aquela que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas delas, ainda falam. Tratados, contra os interesses portugueses, foram firmados entre representantes desses países europeus e poderes locais nessa mesma língua, por ser a única a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente. Ainda hoje, em muitas partes deste lado do Mundo, “Cristão” e “Português” são sinónimos.
A forte identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente cimentou-se em grande parte na adversidade. O conflito religioso nascido na Europa, entre católicos e protestantes, ramificou-se por todas as paragens do Oriente onde o poderio holandês se firmou. A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de qualquer acto de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade e à emigração: Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina foram os destinos principais.
Escondidos em suas casas ou refugiados nas florestas, os membros das Cristandades Crioulas Lusófonas celebravam como podiam os actos de culto. Sem padres e sem igrejas, organizaram-se em irmandades clandestinas que, ao fim de décadas, produziram fenómenos de cristalização cultural, de natureza religiosa - e linguística – que impediriam, por séculos, a sua plena integração nas paróquias católicas criadas posteriormente. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos, o que é visível em algumas celebrações onde os padres se limitam à Eucaristia e à Confissão dos fiéis porque, em tudo o mais, quem manda é a Irmandade.
À medida que a dominação holandesa foi sendo substituída pela inglesa, as Comunidades Crioulas Lusófonas do Oriente foram ficando menos oprimidas e, em alguns casos, foram as próprias autoridades coloniais britânicas a tomar a iniciativa de lhes facultar padres portugueses.
Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o Século XV em Sua Majestade Fidelíssima o Rei de Portugal, após o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal em 1833 e a extinção das ordens religiosas por decreto de 31 de Maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal. Na Índia, no Ceilão - hoje Sri-Lanka -, no Sudeste Asiático, na China e na Oceania. Permanecendo - os que podiam - nas suas missões, os missionários do Padroado não seriam substituídos pelos seus confrades. O clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorria em socorro das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente que iam ficando sem religiosos. Quase sempre em vão. Os missionários da Propaganda Fidae e das Missions Étrangères de Paris já as ocupavam e os respectivos vigários apostólicos impediam-lhes o exercício do seu múnus. A expansão missionária francesa no Oriente começara ainda no século XVII.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, gente simples e temente a Deus, mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé, lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas com quem conflituavam abertamente e às quais consideravam estrangeiras. Durante décadas pagaram por isso o elevado preço de lhes serem recusados os sacramentos a que só esporadicamente tinham acesso quando aportava um navio com um sacerdote, ainda que espanhol. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão.
A firme identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, ainda hoje, evita o casamento dos seus membros com indivídos exteriores a elas e prefere que os futuros cônjuges provenham do seu seio ou de outras cristandades, ainda que distantes. Quando assim não acontece e o casamento une um membro seu a alguém que a ela não pertence, a regra é a conversão deste à religião católica e a aprendizagem da língua crioula.
Algumas dessas comunidades desfrutam de um status ou imagem social positivo nos países onde vivem. Outras, porém, são socialmente desqualificadas e os seus membros são depreciativamente designados por “negros”, apesar da sua côr mais clara - da pele, do cabelo e dos olhos - relativamente aos naturais com outras origens étnicas.
A nível individual, nos países onde se encontram, podem encontrar-se membros originários destas comunidades nos mais elevados estratos da sociedade: do mundo da política à actividade empresarial próspera, nas mais elevadas funções da hierarquia eclesiástica ou simples párocos de aldeia. Onde se verifique a existência de uma significativa percentagem de membros destas comunidades no clero católico, isso parece resultar da intensa discriminação de que são objecto no acesso ao ensino público e ao mercado de trabalho – público e privado. Em regra, dedicam-se a actividades modestas. São pequenos proprietários, simples trabalhadores agrícolas ou pescadores.
Com a descolonização das antigas colónias portuguesas de África foi restituído aos seus povos o direito de decidirem sobre as suas línguas nacionais. Em todas elas o português foi adoptado como língua oficial, ao mesmo tempo que se reconheceu expontânea dignidade às línguas maternas dos seus povos.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, substituído o domínio português, permaneceram sob domínio colonial europeu que as hostilizava ou, pelo menos, não dignificava. Assim permaneceram até à independência dos países em que se encontram, onde constituem minorias com reputação variável em cada um deles. Por naturais razões de unidade do Estado, esses países mantiveram como língua oficial o inglês – a lingua do último colonizador – e privilegiam uma das suas línguas como língua nacional.
O poder colonial inglês não descolonizou as Cristandades Crioulas Lusófonas, no sentido de restituir dignidade à sua identidade, de que a língua crioula faz parte integrante, o que, aliás, não era de esperar. Nem é de esperar que os poderes pós-coloniais de motu proprio venham a dedicar-lhes a atenção a que têm direito.
A incapacidade de Portugal nesta matéria é uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito, como atestam alguns exemplos que se registam de seguida e que ocorreram num intervalo de cento e cinquenta anos.
1. José Joaquim Lopes de Lima, político português e administrador colonial - governador de Timor que cedeu a ilha das Flores aos holandeses -, no seu “Ensaios sobre a Statistica das Possessões Portuguesas no Ultramar..” (1844) dá uma pequena amostra da desconsideração e desrespeito nutrido em relação às Cristandades Crioulas e à língua por elas falada. No que respeita ao Crioulo de Cabo Verde, classificava-o de gíria ridícula, composto monstruoso de antigo Portuguez, e das Linguas de Guiné, que aquelle povo tanto présa, e os mesmos brancos se comprazem a imitar.
2. Em 1988, transmiti ao Secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Albino Cleto, a disponibilidade do Governo de Macau em apoiar a ida de religiosos portugueses para a Missão de S José de Singapura e para a paróquia de S. Pedro de Malaca, em virtude de se encontrarem praticamente retirados, por doença e velhice, os últimos padres portugueses enviados pelo Bispo de Macau. Respondeu-me S. E. Reverendíssima - de um modo que me pareceu tocado de complexo colonial - que a iniciativa deveria partir do Arcebispo e Bispo respectivos. Sugeri que, ao menos, a Conferência Episcopal Portuguesa os convidasse para as comemorações do Centenário da Missionação e, nessa altura, se abordasse o assunto. Que se saiba, nenhum deles esteve nessas comemorações, por declinarem o convite ou por não terem sido convidados. Suponho que se verificou a segunda hipótese.
3. Em Janeiro de 1996, teve lugar em Malaca uma Conferência sobre “O Renascimento do Papiá-Cristão [Crioulo de Malaca] e o Desenvolvimento do Património Malaco-Português”, a que tive a honra de presidir na qualidade de Adido Cultural da Embaixada de Portugal e a convite da respectiva Comissão Organizadora. Entre as comunicações apresentadas, abordaram-se temas da maior importância: as dificuldades que sobreviriam para os pescadores, representando 30% da Comunidade, em consequência dos planos de desenvolvimento local que previam extensos aterros, afastando o mar para longe das suas casas; o estudo, então em curso, para avaliação do número de falantes do Crioulo [Kristang] e necessidades para o respectivo ensino; o crescente interesse da população estudantil da Malásia, espelhado em teses versando a influência do Português sobre o Malaio e de docentes universitários daquele país empenhados em trabalhos de investigação sobre o Papiá-Cristão; a sumariação dos crioulos existentes no mundo, seus diferentes estatutos, intercâmbio dos seus falantes para troca de experiências, inventário das respectivas necessidades, modos de entreajuda e internacionalização desse património comum espalhado por vários países; a complexidade do sistema educativo da Malásia em que coexistem várias línguas e que permite a inclusão de qualquer idioma – incluindo o Papiá-Cristão e o Português padrão – mediante requerimento de quinze pais ou encarregados de educação, etc.
Expressa ou implicitamente os oradores apelaram ao apoio de “Portugal e das Fundações Portuguesas”. Estávamos no início do ano de 1996. Uma das dez conclusões da Conferência consistiu no pedido de avaliação das possibilidades de ligação das Comunidades Crioulas Lusófonas à Comunidade de Povos de Língua Portuguesa (CPLP). Outra propunha que Portugal viabilizasse a organização de um pavilhão das Comunidades Crioulas Lusófonas na EXPO 98.
Tudo foi transmitido ao Governo português pelos canais habituais. A primeira resposta recebida enviava o preçário de arrendamento dos pavilhões! Insistiu-se através de nova diligência procurando explicar melhor o sentido e alcance do que se pretendia. A resposta ignorante que encerrou definitivamente o assunto foi a de que cada Comunidade deveria diligenciar a sua inclusão nas representações dos respectivos países à EXPO 98...
Como me referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay, na Birmânia, U Than Aung - descendente de portugueses - onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa e cuja Comunidade tem as suas origens na cidade de Pegú no ano de 1600, quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar daí.
Na verdade, o que poderão as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente esperar de Portugal? Reflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que:
Não rendem votos aos partidos politicos portugueses, nem remessas de divisas como as dos lucrativos emigrantes portugueses no estrangeiro.
Não rendem votos aos partidos políticos, não proporcionam negócios, nem representam qualquer quota de mercado nas exportações portuguesas.
Não proporcionam receitas de milhões de euros ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses, como acontece com os imigrantes - de África, do Brasil e do Leste Europeu – em Portugal.
Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado.
Ricas e poderosas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e a que caberia prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente - saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem - encaram as poucas de cuja existência sabem vagamente como criaturas simpáticas a que, de vez em quando, se dão uns amendoins com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são, assim, comunidades de excluídos da Lusofonia que a Lusofonia tem o dever de acolher no seu seio.
O fervor recente de promover internacionalmente a Língua Portuguesa não revela a mínima preocupação de cooperar na valorização desse Património Intangível da Humanidade que é constituído pelos crioulos de base portuguesa: do Oriente e de alguns dos Países de Língua Oficial Portuguesa.
Mas o desconsolo maior é que excluídos da Lusofonia acabamos por estar todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa – padrão ou crioula - enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro – jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque –, de circular livremente entre os nossos países, a Lusofonia/CPLP pode ser tudo o que quiserem. Mas não é de certeza uma Comunidade de povos livres de circularem livremente entre os respectivos países.