sábado, 18 de outubro de 2008

PARA COMEÇAR BEM O SÁBADO

Tem aqui um texto mais extenso que o habitual, para descontrair e vivificar o seu espírito.

Divirta-se com a elegância e a mestria de Eça de Queiroz na abordagem de um dos seus temas favoritos, a infedilidade.

[in A Correspondência de Fradique Mendes].

Eduardo e eu sorvíamos as derradeiras fezes do bock, já desiludidos de Ramalho e das suas pompas, quando roça pela nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho, esticadinho, que traz na mão com respeito, quase com religião, um soberbo ramo de cravos amarelos. É um homem de além dos mares, da República Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo — que o retém e apresenta «o .sr. Mendibal». Mendibal aceita um bock: e eu começo a contemplar mudamente aquela facezinha toda em perfil, como recortada numa lâmina de machado, de uma cor acobreada de chapéu-coco inglês, onde a barbita rala, hesitante, denunciando uma virilidade frouxa, parece cotão, um cotão negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada recua, foge toda para trás, assustada. O caroço da garganta esganiçada, ao contrário, avança como o esporão de uma galera, por entre as pontas quebradas do colarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na gravata, grossa pérola.
Eu contemplo, e Mendibal fala. Fala arrastadamente, quase dolentemente, com finais que desfalecem, se esvaem em gemido. A voz é toda de desconsolo: — mas, no que diz, revela a mais forte, segura e insolente satisfação de viver. O animal tem tudo: imensas propriedades além do mar, a consideração dos seus fornecedores, uma casa no Parc-Monceau, e «uma esposa adorável». Como deslizou ele a mencionar essa dama que lhe embeleza o lar? Não sei. Houve um momento em que me ergui, chamado por um velho inglês meu amigo, que passava, recolhendo da 'Opera, e que me queria simplesmente segredar, com uma convicção forte, que «a noite estava esplêndida!» Quando voltei á mesa e ao bock, o argentino encetara em monólogo a glorificação da «sua senhora». Carmonde devorava o homenzinho com olhos que riam e que saboreavam, deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava com a compostura pesada de um português antigo. E Mendibal, tendo posto ao lado sobre uma cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos, desfiava as virtudes e os encantos de Madame. Sentia-se ali uma dessas admirações efervescentes, borbulhantes, que se não podem retrair, que trasbordam por toda a parte, mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que passasse, aquele homem iria deixando escorrer a sua adoração pela mulher, como um guarda-chuva encharcado vai fatalmente pingando água. Compreendi, desde que ele, com um prazer que lhe repuxava mais para fora o caroço da garganta, revelou que Madame Mendibal era francesa. Tínhamos ali portanto um fanatismo de preto pela graça loura de uma parisiensezinha, picante em sedução e finura. Desde que compreendi, simpatizei. E o argentino farejou em mim esta benevolência crítica — porque foi para mim que se voltou, lançando o derradeiro traço, o mais decisivo, sobre as excelências de Madame: «Sim, positivamente, não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que ela cuidava da mamã (da mamã dele), senhora de grande idade, cheia de achaques! Pois era uma paciência, uma delicadeza, uma sujeição... De cair de joelhos! Então nos últimos dias a mamã andara tão rabugenta!... Madame Mendibal até emagrecera. De sorte que ele próprio, nesse domingo, lhe pedira que fosse distrair, passar o dia a Versalhes, onde a mãe dela, Madame Jouffroy, habitava por economia. E agora viera de a esperar na gare de Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa criatura estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, numa ânsia de recolher. Nem lhe soubera bem a visita à mamã! A maior parte da tarde, e uma tarde tão linda, gastara-a a reunir aquele esplêndido ramo de cravos amarelos para lhe trazer, a ele!»
É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos! Até consola. Olhe que para estas lembrancinhas, para estes carinhos, não há senão uma francesa. Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos, um só que fosse, um rapaz, não me trocava pelo príncipe de Gales. Eu não sei se o senhor é casado. Perdoe a confiança. Mas se não é, sempre lhe direi, como digo a todo o mundo: — Case com uma francesa, case com uma francesa!...

Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. Como V. não vinha, fugidio Ramalho, dispersámos. Mendibal trepou para um fiacre com o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os passos, no calor da noite, até ao clube. No clube encontro Chambray, que V. conhece — o «formoso Chambray». Encontro Chambray no fundo de uma poltrona, derreado e radiante. Pergunto a Chambray como lhe vai a vida, que opinião tem nesse dia da vida. Chambray declara a vida uma delícia. E, imediatamente, sem se conter, faz a confidência que lhe bailava impacientemente no sorriso e no olho humedecido.
Fora a Versalhes, com tenção de visitar os Fouquiers. No mesmo compartimento com ele ia uma mulher, une grande et belle femme. Corpo soberbo de Diana num vestido colante do Redfern. Cabelos apartados ao meio, grossos e apaixonados, ondeando sobre a testa curta. Olhos graves. Dois solitários nas orelhas. Ser substancial, sólido, sem chumaços e sem blagues, bem alimentado, envolto em consideração, superiormente instalado na vida.
E, no meio desta respeitabilidade física e social, um jeito guloso de molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da língua... Chambray pensa consigo: «Burguesa, trinta anos, sessenta mil francos de renda, temperamento forte, desapontamentos de alcova.» E apenas o comboio larga, toma o seu «grande ar Chambray», e dardeja a dama um desses olhares que eram outrora simbolizados pelas flechas de Cupido. Madame impassível. Mas, momentos depois, vem de entre as pálpebras um pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado, por trás do («Figaro» aberto), um desses raios de luz indagadora que, como os da lanterna de Diógenes, procuram um homem que seja um homem. Ao chegar a Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa da poeira, Chambray arrisca uma palavra, atrevidamente tímida, sobre o calor de Paris. Ela concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo. Está travada a écloga. Em Suresnes, Chambray já se senta na banqueta ao lado dela, fumando. Em Sevres, mão de Madame arrebatada por Chambray, mão de Chambray repelida por Madame: — e ambas insensivelmente se entrelaçam. Fm Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um passeio por um sítio de Viroflay que só ele conhece, recanto bucólico, de incomparável doçura, inacessível ao burguês. Depois, as duas horas tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a deixa hesitar — arrebata-a moralmente, ou antes fisiologicamente, pela simples força da voz quente, dos olhos alegres, de toda a sua pessoa franca e máscula.
Ei-los no campo, com um aroma de seiva em redor, e a Primavera e Satanás conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes. Chambray conhece à orla do bosque, junto de água, uma tavernola que tem as janelas encaixilhadas em madressilva. Porque não irão lá almoçar urna caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade sente uma fomezinha alegre de ave solta no prado: e Satanás, dando ao rabo, corre adiante, a propiciar as coisas na taver¬nola. Acham lá, com efeito, uma instalação magistral: quarto fresco e silencioso, mesa posta, cortina de cassa ao fundo escondendo e traindo a alcova. «Em todo o caso que o almoço suba depressa, porque eles têm de partir pelo trem das duas horas» — tal é o brado sincero de Chambray!
Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma inspiração genial — despe o casaco, abanca em mangas de camisa. E um rasgo de boémia e de liberdade, que a encanta, a excita, faz surgir a «garota» que há quase sempre no fundo da «matrona». Atira também o chapéu, um chapéu de duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga os braços, e tem este grito de alma:
— Ah oui, que c'est bon, de se desembêter!
E depois, como dizem os Espanhóis — la mar. O Sol, ao despedir-se da Terra por esse dia, deixou-os ainda em Viroflay; ainda na tavernola; ainda no quarto; — e outra vez à mesa, diante de um beefsteak reconfortante, como os acontecimentos pediam com urgência e lógica.
Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar à estação para tomar o trem de Paris. Ela aperta devagar as fitas do chapéu, apanha uma das flores da janela que mete no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo quarto e pela alcova, para tudo decorar e reter — e partem. Na estação, ao saltar para um compartimento diferente (por causa da chegada a Paris), Chambray, num aperto de mão, já apressado e frouxo, suplica-lhe que ao menos lhe diga como se chama. Ela murmura — Lucie.
— E é tudo o que sei dela — conclui Chambray, acendendo o charuto. — E sei também que é casada porque na gare de Saint-Lazare, à espera dela, e acompanhado por um trintanário sério, de casa burguesa, estava o marido... É um rastacuero cor de chocolate, com uma barbita rala, enorme pérola na gravata... Coitado, ficou encantado quando ela lhe deu um grande ramo de cravos amarelos, que eu lhe mandara arranjar em Viroflay... Mulher deliciosa. Não há senão as francesas!