sexta-feira, 14 de março de 2008

«É A SAÚDE, ESTÚPIDO!»

Na revista “Visão”, de hoje, 14 de Março de 2008, o sociólogo, Boaventura Sousa Santos, escreve este curto mas elucidativo artigo que resume o essencial da explicação do que tem vindo a acontecer na Saúde ao longo destes últimos três quatro anos. Transcrevo na íntegra a peça de Sousa Santos. Para ser lida por todos. Inclusive os «estúpidos» deste País.


«É trágico que neste domínio haja uma continuidade entre as políticas do PSD e do PS: privatizar a Saúde, transformando-a num lucrativo sector de investimentos de capital.»

«Is the economy, stupid», afirmou Bill Clinton, em 1992, para explicar aos republicanos as razões da sua vitória eleitoral. Com isso queria dizer que as preocupações principais dos norte-americanos tinham a ver com o estado da economia e o modo como este se traduzia no seu bem-estar. E por isso uma das suas promessas eleitorais prioritárias era a criação de um sistema de saúde universal que acabasse com o escândalo de, no país mais rico do mundo, cerca de 30 milhões de cidadãos não terem qualquer protecção na doença. As grandes empresas da indústria da saúde (das hospitalares às seguradoras e à indústria farmacêutica) moveram uma das guerras mediáticas mais agressivas de que há memória contra a «medicina socialista» de Clinton e a proposta caiu. Hoje são 49 milhões os norte-americanos sem qualquer protecção na doença.

É trágico que em Portugal se esteja a tentar destruir aquilo a que o povo norte--americano tanto aspira. Mais trágico ainda é que, neste domínio, haja, desde 2002, uma continuidade entre as políticas do PSD e do PS. Descartada a retórica, os objectivos dos ministros da Saúde Luís Filipe Pereira e Correia de Campos (ou dos governos a que pertenceram) foram os mesmos: privatizar o bem público da Saúde, transformando-o num lucrativo sector de investimentos de capital (afirmação de um quadro de uma grande empresa de saúde: «Mais lucrativo que o negócio da saúde, só o negócio das armas»); transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) num sistema residual, tecnológica e humanamente descapitalizado, proporcionando serviços de baixa qualidade às populações pobres; definir a eficiência em termos de custos e não em termos de resultados clínicos (levado ao paroxismo pela decisão de limitar o aumento da produção cirúrgica nos hospitais, para não aumentar a despesa); impor rápida e drasticamente três palavras de ordem: privatizar, fechar, concentrar; promover parcerias público/privado em que todos os riscos são assumidos pelo Estado e as derrapagens financeiras não contam como desperdício ou ineficiência (já que um e outra são um exclusivo do sector público).

A Correia de Campos apenas devemos reconhecer a coerência. Desde que passou pelo Banco Mundial assumiu-se como coveiro do Estado Social, na Saúde e na segurança social. Na Comissão do Livro Branco da Reforma da Segurança Social, a que pertenci, verifiquei com espanto que os seus aliados na comissão não eram os socialistas, eram precisamente Luís Filipe Pereira (que pouco depois quis privatizar a Saúde) e Bagão Félix (que, desde sempre quis privatizar a Segurança Social). Portanto, de duas uma: ou o PS abandonou os seus princípios ou Correia de Campos está no partido errado. A sua recente demissão parece apontar para a segunda opção. Veremos.

O SNS é um dos principais pilares da democracia portuguesa, e a ele se devem os enormes ganhos de desenvolvimento humano nos últimos 30 anos; qualquer retrocesso neste domínio é um ataque à democracia. O SNS é um factor decisivo da gestão territorial do país. Os critérios de eficiência incluem a eficiência na vida dos doentes, cujo atendimento pontual é fundamental para que não se perca uma manhã num acto médico que dura 20 minutos. É urgente modernizar o SNS para o aproximar dos cidadãos, permitindo a participação destes e das associações de doentes na concretização do direito à saúde. Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar com a escandalosa promiscuidade entre a medicina pública e privada. Promover a estabilidade e as carreiras, apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina. E, sobretudo, tornar claro o carácter complementar do sector privado, antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde. Quando tal acontecer serão eles a dizer: «É a saúde, estúpido!», a saúde dos seus negócios, não a dos cidadãos estúpidos


Nota: Destaques e sublinhados «de minha autoria e responsabilidade».
E digo mais: Fui eu que Fiz.