quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

CONFISSÃO DE UM AQUÓMANO

As inundações havidas há dois dias em Lisboa deram-me que pensar.

Assim como há pirómanos, eu acho que sou aquómano. Desde miúdo que tenho a mania da água. Lembro que quando pequeno me entretinha a molhar pessoas que passavam na nossa rua esguichando-lhes água por seringas de injecção que às vezes eu ia pedir ao hospital. Chegava a pensar que se eu tivesse então um canhão de água havia de submergir a cidade de S. Filipe a golpes de gigantescas trombas de água.

Sempre gostei de ver inundações; e quando as havia e eu não as presenciava, visitava logo que podia os lugares onde se davam para, vendo os estragos causados, imaginar o “trabalho” da água. Ainda miúdo, na instrução primária, me deliciava com gravuras e desenhos que via nos livros que meu avô materno tinha, ilustrando relatos do terramoto de 1755 e o consequente maremoto que então devastou Lisboa. Interessava-me pensar no mar, na altura das ondas e no seu desaguar pela cidade dentro. Nunca me aconteceu pensar nas pessoas ― via diante de mim apenas uma cidade desabitada invadida pelo mar.

Já adolescente, aí pelos meus dezasseis dezassete anos, uma tromba de água devastou o lugar de Galinheiros, na Ilha do Fogo, rapando literalmente o chão: dizia-se que tinha sugado muros árvores e animais não se tendo encontrado, em qualquer parte da ilha, o mínimo vestígio do sucedido; dizia-se ainda que tudo tinha sido levado para o céu e sido “descarregado” bem longe no mar. Quando se deu a notícia, lembro-me de ter pedido boleia de mota a um amigo para irmos fotografar o lugar ― e fomos. Logo que encontre uma fotografia desse acontecimento colocá-la-ei aqui.

Em 1967 um furacão medonho varreu a Ilha do Fogo e a cidade de S. Filipe provocando grandes estragos em casas, árvores e mobiliário público vário: tirei muitas fotografias das destruições provocadas pelas enxurradas ― por puro gozo, reconheço.

E até hoje não me curei desta doença.

A minha obsessão pela água é tal que volta e meia sonho com inundações várias provocadas mor das vezes pelo mar invadindo a terra; a cidade de S. Filipe, onde nasci, é sempre a mais atingida nos meus sonhos: apesar de se situar ― imagine-se ― a mais de trezentos metros acima do nível do mar.

Mas ao contrário do que se poderia pensar, a inundação da cidade americana de New Orleans causou-me o maior desgosto. Não sei se esse meu desgosto terá tido a ver com o meu amor pelo Jazz, ou se porque a calamidade ceifou vidas humanas e eu tomei conhecimento disso, ou se porque o modo de vida daquela população me seduzia pela sua poesia (apesar da pobreza) e pela genuinidade dos sentimentos habitualmente expressos, e eu vira que com as inundações aquele mundo desaparecera para sempre. Talvez tenha sido por tudo isso junto.

Por último deixem-me confessar-vos uma coisa: mesmo à porta de minha casa há um compartimento com uma mangueira de incêndio enrolada em sarilho. Sempre que entro em casa olho e reolho para aquilo; às vezes abro a portinhola do compartimento e toco a lona da mangueira com a ponta dos dedos sentindo-lhe a textura.

Já por várias vezes me passou pela cabeça desenrolar aquilo, abrir totalmente aquela torneirona e encher a casa de água até ao tecto. Acho que viveria feliz naquele aquário. E imagino o prazer que teria de cada vez que alguém batesse à porta ― Chuáááá!... era ver as pessoa desaguando de enxurrada pela caixa do elevador abaixo numa queda de treze andares sem consequências!...

Coisa linda, não é?!

?.. ... ... Não?!!!