quinta-feira, 15 de junho de 2006

CRIMES EM ANGOLA

Sou dono de uma mente fantasista e maldosa que insiste em pregar-me as piores partidas. Por isso sofro, sofro muito.

Quando adormeço ou apenas cochilo cabeceando de sono, costuma aparecer-me um velho funcionário administrativo que me conta histórias de Angola, do tempo do colonialismo (décadas de cinquenta e sessenta) com a maior desfaçatez e não menor inconsciência dos crimes que relata. É um indivíduo que se pretende íntegro, senhor de boa conduta moral e crítico acérrimo da dissolução dos bons velhos costumes portugueses desta sua amada pátria, Portugal.

Costuma contar-me essas histórias na presença de outros ex-administrativos que estiveram ao mesmo tempo em Angola, os quais nunca o desmentem e dos quais algumas vezes se socorre para lhe avalizarem partes ou o todo de algum relato.

Já perdi a conta aos crimes e atrocidades por ele relatados ao longo do último lustro. Há cerca de vinte anos que me aparece nesses momentos de fuga à realidade, mas só nestes últimos cinco anos é que esse patriota (como às vezes se auto-intitula) resolveu desatar a língua e deixar sair os relatos do horror que lhe vai na memória: rapto de pessoas, amputações, violações e sodomização de menores, assassinatos gratuitos; tudo isso é relatado como se fosse uma prática habitual e normal de um certo período colonial, com exacerbação «no tempo do terrorismo», como ele soe precisar.

Ontem foram duas as revelações que me fez enquanto eu pegava não pegava no meu sono da tarde. Primeira revelação: havia na barragem de Cambambe um motorista branco que quando bebia uns copos começava a olhar para os pretos mais salientes que estivessem por perto. E se calhasse, por exemplo, encontrar um que usasse uma barbicha, começava a meter-se “amigavelmente” com ele até lhe ganhar a confiança, e, como fazia quase sempre, afagando-lhe a barbicha lhe dizia: – sabes, pareces o Lumumba. Vem daí dar uma volta, vamos para o jipe dar um passeio –. E partia com o preto a quem alguns quilómetros depois enfiava um balázio na nuca. – «Desfez-se de dezenas deles» – garante o administrativo perturbando o meu descanso.

Segunda revelação: um dia, numa localidade qualquer do interior, a autoridade administrativa formou um pequeno grupo que fez uma matança de 114 pessoas. Abriram uma vala enorme onde amontoaram os corpos que, contudo, mal couberam na vala comum ficando algumas pernas e braços de fora. Como já se fazia tarde e aquela malta estava cansada, o heróico e valente administrativo concluiu o “trabalho” munido de uma catana com a qual decepou e capinou os braços e pernas que se mantinham desenterrados.

Estes são pequeníssimos exemplos das histórias macabras que esse personagem me traz nos pesadelos que me acometem quando tento conciliar o sono, ou quando o desvario de minha mente malsã resolve afogar-me em cenas de horror. Muito tenho sofrido ao longo dos últimos cinco anos com as histórias que esse personagem do além, que povoa o meu sono e me tira a paz que eu busco quando estou cansado, insistentemente faz questão de me contar. Se trago hoje aqui estas histórias, é porque já não aguento mais sozinho a tortura que os relatos desses crimes assustadores me tem causado a ponto de eu me sentir enlouquecer.

Peço desculpas por trazer-vos estes relatos, mas foi o meu psicanalista que assim me aconselhou: – «deves falar disso a toda a gente, e se tens um blogue então ainda melhor: basta escreveres isso uma vez» –.

Foi o que fiz.