sexta-feira, 25 de março de 2005

DI BERBUM CADO FATUSÉS

Chegados que estamos a esta quadra da Páscoa lembro-me de quando ainda era criança e minha mãe me levava pela mão, no "Sábado de Aleluia", para assistir à "missa da ressurreição" de Cristo que se realizava na Igreja Matriz de S. Filipe, às 11 horas da manhã.

Lembro-me que me impressionava bastante todo aquele ambiente de luto em que se celebrava a missa; da semi-obscuridade da igreja imposta pelas portas fechadas e pelas janelas tapadas com cortinas pretas impenetráveis à luz.

Chegada a hora da ressurreição de Cristo caíam as cortinas das janelas e abriam-se as portas da igreja que era então completamente inundada, de repente, por faiscantes raios do radioso sol de Cabo Verde; soltavam-se pombas brancas que esvoaçavam pela nave da igreja pousando, instáveis, em qualquer saliência que encontrassem nas paredes. O coro entoava com alegria e fervor religioso o "Aleluia" e os corações dos fiéis enchiam-se de alegria.

Mas para mim esses tempos foram sol de pouca dura: poucos anos depois todo aquele encanto se perdeu pois a "missa da ressurreição" passou a ser celebrada à meia noite de sábado para domingo.

Ainda fui obrigado por minha mãe a assistir a essa missa durante os dois anos seguintes à sua passagem para missa nocturna. Minha mãe obrigava-me então a fazer um estágio pré-missa dormindo entre as nove as onze horas da noite. Às onze horas em ponto começava o meu suplício: era acordado por minha mãe que me conduzia, amparado, à casa de banho para que lavasse a cara com água fria e assim acordasse de vez; vestido a preceito eu era então arrastado pelas ruas até à Igreja Matriz; depois vinha a missa à qual eu assistia(?) cabeceando de sono, e às vezes dormitando mesmo, encostado a minha mãe. Quando chegava o momento da "ressurreição de Cristo" minha mãe sacudia-me para ter a certeza de que eu estava acordado e então assistíamos àquela cena triste do cair dos panos das janelas, continuando tudo às escuras como já estava, e assistindo ao voo desorientado de pombos assustados que batiam nas paredes sem saberem bem o que haviam de fazer nem onde poisar e muito menos porque haviam de voar àquela hora da noite. Cantava-se o "Aleluia" mas aquele cântico não jogava lá muito bem com aquele ambiente tão triste e deprimente.

Creio que esta foi a primeira razão por que eu me afastei da Igreja Católica. Outra razão para mim muito importante era a obrigatoriedade que havia de eu me confessar a padres mais pecadores do que eu, padres a quem eu já não reconhecia o direito de me perdoar, ainda por cima «em nome de Deus».

Depois também havia toda aquela história de a missa ser rezada em Latim e eu não perceber patavina daquela lengalenga enfadonha que durava a eternidade de uma hora ou mais. Às vezes a missa durava quase duas horas quando era "missa cantada" (havia então quem brincasse dizendo que se fosse missa assobiada talvez durasse menos).

E por falar em "Latim" - lembro-me de uma frase que o povo usava às vezes para fazer esconjuros: "Di Berbum cado fatusés". Só depois de já muito adulto vim a saber a origem dessa frase: "Et Verbum caro factum est" ("E o Verbo se fez carne").

Pois é! Se me perguntarem se amanhã vou à missa da ressurreição levam com esta resposta: Di Berbum cado fatusés!