quarta-feira, 23 de julho de 2003

JORGE BARBOSA

Houve um tempo em que o mar, para além de dar o sustento, era quase tudo para o cabo-verdiano – o único caminho para muita coisa –. Dele dependiam a circulação do correio, das mercadorias, das pessoas; era o caminho do sonho e do pesadelo: o sonho da vida desafogada do estrangeiro e o pesadelo do desenraizamento e da perda cultural. Mas o mar era mais visto como um bem do que como um mal: era a única porta de saída para uma vida melhor; a única via de evasão da prisão das ilhas.

O poeta, Jorge Barbosa, no belo poema “Cinzeiro”, esqueceu por um momento a sua permanente preocupação com as dificuldades das ilhas e imaginou-se emigrante numa viagem transatlântica. Fiquemos com esse poema.

À noute quando escrevo
tenho fantasias
que não chego a escrever
nem conto a ninguém

Esta, por exemplo,
de ver um paquete
no meu cinzeiro
de feitio oblongo!

Ponho nele, de pé,
as pontas dos cigarros.
São mastros
E chaminés fumegantes...

Os fósforos
são carregamento
e a cinza
são as cinzas das fornalhas...

Deito nele
pedacinhos de papel que eu rasgo,
- restos de algum poema...
São cartas para longe.

Voam à roda do meu cinzeiro
pequeninos insectos tropicais
companheiros nocturnos
dos poetas da minha terra

São os pássaros marinhos,
as gaivotas
que vêm espreitar
de perto o paquete

Empurro-o com a mão
e o paquete lá vai
com o rumo traçado
através do Atlântico

Lá vai!
E como é bom partir
mesmo dentro
da nossa fantasia
Lá vai!
Os passageiros da primeira
passeiam no deck
ou jogam o bridge...

E a rapariga loura
estira-se indolente
na cadeira de lona
a ler um romance...

No convés da terceira classe
um emigrante qualquer
debruçou-se na borda
olhando o horizonte...

Sou eu.