“Ser culto es el único modo de ser libre”
José MARTÍ (1853-1895)
Para principiar:
“Quando os nossos escravos se encontram à bordo colocamos aos ferros os homens dois a dois, enquanto estivermos no porto e à vista do seu país, visto que é nesse momento que estão mais inclinados para fugir e se amotinar... São alimentados duas vezes por dia... o que é a hora em que eles estão mais levados à motinaria, encontrando-se todos em cima da ponte; por conseguinte, durante todo este tempo, os dos nossos homens que não estão ocupados à distribuir-lhes o alimento e em apaziguá-los, permanecem perto das suas armas e alguns seguram fósforos iluminados perto dos grandes canhões que se dirigem por cima deles, carregados de granalhas até ao que eles tenham terminado e tornaram a descer nas suas habitações entre as pontes”. IN T. PHILLIPS (1693-1694), Documentos, volume I.
(I) Na verdade, o ecletismo e o espírito de competição das sociedades Africanas outorgavam às mercadorias europeias um atrativo fatal. Nenhuma era essencial, exceção feita (num sentido), armas de fogo, porém a maioria eram bens de consumo (suficientemente), apreciados para impelir os soberanos e muitas pessoas ordinárias à vender outros Africanos (para com os quais), nada sentiam, como se fosse na Idade Média, em que os Genoveses e os Venezianos venderam outros europeus aos Muçulmanos.
(II) Vale a pena, anotar, que outros se opunham, a este tipo de relacionamento, não forçosamente por razões morais! Foi o caso de muitos povos sem Estado. O Benim encerrou o seu mercado aos escravos, o rei Afonso do Congo deplorou os efeitos nefastos do tráfego. Existem depoimentos, mostrando, que pessoas ordinárias ajudavam os escravos à se evadir. Sendo dado, a preocupação (tipicamente africana), de incrementar a população, vender homens era chocante e de uma trágica ironia! A lógica do tráfego residia no divórcio entre interesses colectivos e interesses individuais, os homens poderosos entregando-se ao tráfego para procurar bens que lhes permitiriam atrair clientes ainda mais numerosos. Eles vendiam pessoas para adquirir outros!
(III) Uma vez, a arrematação/venda terminada, o escravo era confiado ao novo proprietário europeu. A primeira tarefa consistia em marcá-lo, à cada mudança de proprietário. A segunda tarefa, fazê-lo embarcar antes que (ele) morra num barco de abalada para a América. Neste particular, verifica-se, uma ausência de estatísticas fiáveis acerca da mortalidade dos escravos, antes do embarque.
(IV) No entanto, segundo JOSEPH MILLER, em 100 pessoas reduzidas à escravatura, em Angola nas últimas décadas do século XVIII, 10 morriam aquando da sua captura, 22 no percurso da Costa, 10 nas cidades costeiras, 6 em pleno mar e 3 apenas chegados na América. Donde (por conseguinte), menos de metade estava condenada ao trabalho servil.
(V) Demais, poder-se-ia citar cifras mais elevadas para cada etapa, designadamente: No término do século XVII, os escravos da Gâmbia custavam (pelo menos), cinco vezes mais na Costa que no interior das terras, no lugar onde tinham sido capturados. Não é possível ser mais preciso, porém, todo tempo passado na cerca/recinto para escravos da Costa, ou à bordo de um navio, esperando de se fazer ao mar, comportava numerosos riscos de enfermidade, suicídio ou tentativa de evasão. Atentem bem no conteúdo de verdade no texto de PHILLIPS, acima inserto.
(VI) Como se pode ver, na verdade, o instante de partida era traumatizante. É (aliás), elucidativo, o que, um marinheiro exara, no seu jornal de bordo: “Os escravos estiveram agitados a noite inteira. Sentiam os movimentos do navio. Nunca ouvi piores urros, semelhantes ao dos pobres-diabos de BEDLAM. Os homens sacudiam os seus ferros, o que era ensurdecedor”. De feito, a angustia vinha em parte do que numerosos Africanos acreditavam que os Europeus eram criaturas marinhas, canibais oriundos do país dos mortos, cujas botas pretas eram feitas de peles dos Africanos, cujo vinho tinto era o sangue dos Africanos, a pólvora, ossos de Africanos triturados e queimados. De anotar, que receios similares existiam em Moçambique e entre os povos expostos ao tráfego de escravos trans-Sarianos.
(VII) De referir, no entanto, que os escravos de proprietários africanos eram eles outrossim, capazes de uma violência exasperada (suicídio ou homicídio), inspirada por uma honra ferida e o amor da liberdade. As revoltas eram frequentes nos navios negreiros. Segundo (aliás), uma amostra holandesa bem documentada, 20% dos trajetos conheciam motinarias, enquanto no século XVIII, se 5% (unicamente), das viagens completadas pelos negreiros franceses, viam produzir-se revoltas, na metade dos casos, estas eram vitoriosas. Várias de entre elas foram possíveis graças à participação das mulheres, que gozavam de uma maior liberdade de movimento. Não que houvesse muito espaço numa tumba (um caixão), como asseveravam os portugueses, falando dos seus navios negreiros.
(VIII) Vale a pena elucidar, que, no século XVIII, um barco francês desse género fazia (em média), vinte metros de comprimento, seis de largura e levava (aproximadamente), 300 escravos. Entre 1839 e 1852, 104 navios deste género foram medidos: um escravo dispunha em média, na ponte de um espaço de 0,4 m2. Eis porque a taxa de mortalidade subia em relação ao carregamento e, por seu turno, a acumulação/amontoamento favorecia a difusão das doenças gastrintestinais.
(IX) E, uma vez, o barco repleto, a sobre-acumulação nada mudava ao número de óbitos, que dependia (antes de tudo), da extensão e duração da viagem (de dois a três meses no século XVIII, porém, por vezes muito mais) e do desencadeamento de uma epidemia (geralmente), a disenteria, a varíola ou escorbuto. Entre 1630 e 1803, uma tal viagem matava (em média), 14,8% dos escravos embarcados num navio holandês. As mulheres e as crianças sobreviviam melhor que os homens. Interessante, assinalar, que os tubarões seguiam (por vezes), os navios durante um mês!
(X) Finalmente, os relatos feitos pelos escravos que sobreviveram na travessia do Atlântico fazem sobressair três recordações marcantes:
a. A atmosfera fétida da secção dos escravos, onde por vezes, uma vela não podia queimar
b. A constante brutalidade da tripulação
c. E a sede, visto que a água era tão preciosa como escassa, a ração normal sendo de aproximadamente de um litro por dia.
d. Eis porque, se nos afigura relevante, transcrever, neste ponto, a descrição assaz evocadora, que nos deixou, OLAUDAH EQUIANO, raptado em país IGBO, na idade de onze anos e vendido em 1756 à traficantes ingleses. Atentem bem, neste pungente e realista Relato, que fala por si: “A falta de espaço do lugar e o calor do clima, acrescentados ao número de homens no navio, que se encontrava tão carregado que cada um tinha apenas lugar que chegasse para se voltar, nos sufocavam quase. Isto provocava abundantes transpirações, de sorte que o ar se tornasse dentro de pouco tempo quase impossível para respirar, por causa dos odores repugnantes, tendo provocado entre os escravos uma doença da qual muitos morreram...Esta situação deplorável foi ainda agravada pelas escoriações provocadas pelas correntes, tornadas insuportáveis e pelo fedor das selhas de necessidade, nas quais as crianças caiam frequentemente e onde faltavam sufocar. Os gritos agudos das mulheres, os estertores dos moribundos, faziam de tudo isto uma cena de horror quase inconcebível”. IN Africa remembered (MADISON, 1967).
Lisboa, 21 Março 2012
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo)