Peça Ensaística Décima:
“Ser culto es el único modo de ser libre”
José MARTÍ (1853-1895).
Algumas Ideias acerca da Ideologia e Racionalidades médicas:
“En règle générale, les entreprises de l’histoire des sciences indisposent facilement les scientifiques. Le chercheur n’aime pas se sentir objet de recherche. Charlie Nicolle couvre d’ironie ces historiens incapables d’originalité qui s’adjugent le soin d’expliquer les œuvres des génies. Le travail de l’historien des sciences est donc extrêmement délicat et, contrairement à ce qu’on pourrait être tenté de croire, exige une grande humilité intellectuelle ». MRKO GRMEK, Claude Bernard et la méthode expérimentale (1991).
(I)
(1) A Medicina procede (nada menos, nada mais que) da Ciência do seu tempo como da Arte terapêutica da sua Clínica. A medicina científica permitiu progressos espectaculares, no âmbito da luta racional contra as enfermidades. Por seu turno, as técnicas donde esta medicina procede prestou (actualmente) incomensuráveis serviços à Humanidade.
(2) Por outro lado, os estudos estatísticos, a Epidemiologia e a Medicina edificada sobre provas participam (sem dúvida nenhuma), no avanço das técnicas científicas. Por conseguinte, Acto! Aqui ainda, o que se condena releva de uma ideologização desta dimensão científica e técnica (que tende) a impor a sua lei sobre as práticas clínicas (ao ponto) de renegar a sua missão terapêutica.
(3) De anotar, que esta denegação não se faz sem beneficiários políticos e económicos cuja indústria da Saúde drena as magnificências (ao ponto; que o paciente se encontra reconhecido em direitos de consumidor esclarecido e conhecedor por falta de ser acolhido como sujeito/indivíduo (em aflição), ou convidado a exercer a sua função política.
(4) Solicita-se-lhe (o máximo, quando muito), na nossa cultura moderna, se transformar em sujeito/indivíduo “psicológico moral”, apto a fazer prova da sua conformidade biográfica ás normas dos comportamentos. Esta “normalização” das condutas (em benefício) dos governos das condutas e do mercado do vivo, cumpre uma paixão da ordem (que constrange), o indivíduo/sujeito ao conformismo individual.
(II)
(a) Na sua maioria, os médicos são “formidáveis” e recusam ver o seu papel reduzido a uma técnica situada entre a Ciência e o Consumo. O Colóquio clínico, desde então, que se preocupa com os seus efeitos terapêuticos exige (seria apenas por causa da ética), uma maior implicação.
(b) E isto (tanto mais que), no âmbito da cultura ocidental, a medicalização da existência humana é (presentemente), um facto comprovado: Um facto deduzido da nossa “própria” civilização, que promove a Saúde como um direito à felicidade. Razão de mais (aliás), para recusar reduzi-la a um (mero bem de consumo), como um outro gerido pelos exclusivos proveitos do mercado.
(c) Todavia, o que importa (antes de mais), sublinhar é que (na verdade), não nos move nada (nada absolutamente), contra os bens de consumo. Porém recusamos (com toda a veemência), que o consumo se torne o bem da ética.
(d) De anotar (no entanto), que esta rejeição de uma fractura entre o terapêutico e o iátrico na prática médica nos conduz a se preocupar restituir ao clínico a plenitude das suas funções terapêuticas sem ceder (por essa razão), a respeito das exigências científicas. Eis porque (ipso facto), não podemos e nem devemos resignar ao que na prática (um se realiza, excluindo o outro), a resignar em dever escolher entre uma medicina “humana”, porém obscurantista ou uma medicina “científica”, todavia, veterinária.
(III)
Antes de mais (vale a pena), consignar, que o pronto-a-vestir do pensamento e da moral (socialmente admitida e partilhada) pode vir a constituir obstáculo à palavra do enfermo (na sua singularidade). Na intimidade do colóquio singular (em princípio), preferimos optar por assumir com este paciente o risco do humano. Dito de outro modo, deve-se tomar o tempo para que as palavras (a priori) inconvenientes, inaceitáveis e intoleráveis possam desencadear e revelar outras palavras (do mesmo modo) revelar o sentido dos ditos racistas e insensatos de início.
Donde e daí, se fazendo a culpabilidade e o erro não se encontram (completamente) lá, onde se os esperava (evidentemente).
(IV)
A responsabilidade médica ou psicológica não se deduz de uma pura conformidade dos processos jurídicos e científicos. Disso o perverso anseia denegar a sua dívida a respeito do humano (que nele existe), tanto quanto no outro. A responsabilidade provém (identicamente) de uma culpabilidade (que nos constitui), como sujeito (sujeito a jamais), enlutado de uma fracção de si mesmo e do outro. A isto, a ideologia da transparência faz oposição.
(V)
Todavia, esta preocupação com a questão que se prende com a transparência e objectivação atingiu, no âmbito da avaliação científica (um ponto tal), que em certos domínios (apenas), fazemos encrespar o ridículo, pois que caímos nisso, sem rodeios. Unicamente, se tem em conta da estrutura formal da prova sem submetê-la à prova. Não se trata de uma questão de ser contra a avaliação científica (tout court). O relevante para nós é assumir uma oposição (assaz robusta), contra o seu conformismo e a sua ideologia, que tenta reificar a análise política e psicanalítica.
No entanto (efectivamente) e por motivos óbvios:
--- Compartilhamos a inquietação de ver aparecer “um mundo científico em que a forma toma (progressivamente), o passo sobre o fundo”.
--- Compartilhamos (outrossim e ainda), a íntima convicção que “La recherche, considérée comme un espace de liberté et de création a encore de beaux jours devant elle. Encore faut-il que les chercheurs de toutes générations s’opposent à une évolution qui les éloigne de leur véritable vocation de créateurs. La recherche doit rester une terre de jeu et d’aventure où s’exprime le goût du risque et de la contestation », comungando (criticamente), com o notável biólogo francês, Pierre JOLIOT (n-1932).
Demais, de anotar (outrossim), que o sábio, Pierre JOLIOT, escreve, na sua célebre obra: La Recherche passionnément, o seguinte: “L’évaluation de la recherche reste un problème mal résolu […]. Je ne partage pas l’optimisme de beaucoup de mes collègues quant à la capacité de notre communauté d’évaluer ce qui est nouveau. Je ne suis pas opposé à une conception élitiste de la science, mais il faut avoir conscience que ce sont les élites elles-mêmes que se définissent comme telles. Elles trouvent dans l’évaluation un moyen efficace pour perdurer et conforter leur pouvoir. Les élites peuvent ainsi se reproduire à l’identité, en amplifiant et en pérennisant par là même les effets de mode ». (Ibid. p. 62-63).
(VI)
Com efeito (na evidência), nos encontramos sobre (pelo menos), uma hipótese: as operações de equivalência e da homogeneização dos seres humanos, na avaliação os transformam. O humano se encontra transformado em “valores” mensuráveis e supostos equivalentes. “Tornou-se um valor de rosto humano”. A forma jurídica desta operação nota o linguista, filósofo e ensaísta francês, Jean-Claude MILNER (n-1841), na sua obra: Voulez-vous être évalué?- Paris 2004), permite o contrato: « dont les partenaires sont censés s’équivaloir en force e avoir quelque chose d’équivalent à échanger. L’hyper paradigme de l’équivalence subsume donc au moins trois paradigmes : problème solution, évaluation et contrat. En retour ces trois paradigmes se co-appartiennent ! »
(VII)
De sublinhar (antes de mais), que o sintoma (mais grosseiro), desta ideologia da avaliação, da transparência e da lisibilidade dos seus critérios é fornecido pelo APA (American psychological Association). O parecer desta Associação para incluir uma revista na sua lista de publicações parece (estritamente), formal. A opinião é pronunciada um mês após a recepção dos documentos e se fundamenta numa avaliação, obedecendo a uma série de critérios relativos à apresentação, à sua declaração de intenção das revistas, sem análise dos conteúdos. Desde então, a publicação de um artigo numa revista vale para todos os peritos “n’importe quel autre article paru dans n’importe quelle autre revue indexée”, no mesmo banco de dados (fora) do seu valor intrínseco e do seu interesse próprio para a descoberta científica.
(VIII)
Deste modo (et pour cause), insidiosa e sub-repticiamente, para muitos « peritos » honestos, inteligentes, humanos, passamos da análise do valor de um trabalho de investigações à sua avaliação (pura e simplesmente), adentro de um sistema de medidas e de cálculo que a aparenta à uma “unidade monetária”.
Eis porque, é mais que tempo, para corrigir os “efeitos perversos” deste sistema que transforma (toda coisa) e todo humano em moeda de troca…E, sem valor, em suma.
De anotar (enfim), que este conformismo da investigação atingiu, no campo psiquiátrico, graus (francamente), inimagináveis.
(IX)
Se nos antolha (assaz relevante), precisar, que não se trata das estatísticas, do cognitivismo ou da experimentação que nos colocam problema. Reiterando (assertivamente). Ou seja: somos (sem sombra de dúvida), respeitadores (atentos) das investigações, no âmbito da Psicologia cognitiva e apreciamos (sobremaneira), os trabalhos, no domínio da Psicologia Social experimental. Em contrapartida, o que é de condenar é a ideologia cognitiva deportada no campo da Saúde e que confere a sua aparência de racionalidade nas práticas e nas teorias “clínicas”, um poder indevido a gerir o humano, nos seus comportamentos, na sua ética e na sua participação ao político.
Com efeito, uma tal mudança, no campo da clínica desta aparência de racionalidade não acontece (aliás), sem pôr problemas aos investigadores de Psicologia cognitiva e experimental (muito frequentemente), conscientes dos interesses sócio-políticos (em jogo) e da forma da qual a sua própria “racionalidade” é utilizada (até) desviada.
(X)
Antes de terminar esta peça ensaística, vale a pena, trazer à colação, o quanto a Psiquiatria norte-americana mostrou (até que ponto) o seu “acervo” de ignomínia, as suas referências à “Ciência”, podiam conduzir. Não se trata (no caso em concreto), de nos mover, nenhuma animosidade contra a Psiquiatria ou os Estados Unidos. Sim, somos (simplesmente), por razões óbvias (francamente), oposto a todo imperialismo cultural ou científica, na medida em que esta “uniformização redutora constitui obstáculo à biodiversidade do vivo, dos seus actores e das suas singularidades”.
De facto, a Psiquiatria revela-se um repto fundamental, crucial, no âmbito da nossa cultura, em que (precisamente), a medicalização da existência humana estende o seu campo (de modo considerável), sem (no entanto), se dotar meios éticos próprios para a formação adequada dos que a praticam e que “olvidam” o “cuidado de si”. Melhor (ainda): Alguns clínicos são engodados por esta pretensa objectividade que só faz “inocentá-los das suas responsabilidades terapêuticas”, no colóquio clínico. Deste modo, os clínicos dos cuidados (psíquicos como médicos), podem se encontrar mais conformes com as “necessidades do mercado económico, político” e (ipso facto), se transformam em agentes de suas apostas respectivas. E, procedendo (deste modo), tais clínicos inclinam (sempre), mais em renegar a culpabilidade fundamental que opera no diálogo terapêutico.
(XI)
Finalmente e, em jeito de Remate (dialecticamente assertivo), com efeito, temos que:
a) É (na verdade), à esta deriva instrumentalizante e reificante, a que se deve opor, elegendo (em sua substituição), uma outra concepção de cuidado, que integra “o cuidado ético no conhecimento”.
b) Donde e daí, privilegiando (unicamente), as formas do conhecimento, a ideologia ver-se-á reduzido a um mero vampiro da vida.
c) De facto (ela), apenas satisfaz a paixão de ordem, que opera “como uma paixão de morte e de nada”.
Lisboa, 09 Agosto 2011
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo).