terça-feira, 26 de julho de 2011

Mais um Tema para Reflexão:

Peça Ensaística Sexta:


Ser culto es el único modo de ser libre
José MARTÍ (1853-1895).

                        Nota preambular:

                                    Vivemos (presentemente), na Era da Sobremedicalização da existência humana, cujo corolário lógico se assume na sua capacidade de fazer da vida uma enfermidade, o que vai contra a ética e deontologia médica, na sua assunção nobre, que exige “reconhecer no enfermo a chacra/sítio e as próprias operações da vida”.
                                    De imediato, se impõe perguntar (avisada e assertivamente): Como se pode ser doente (actualmente), com uma medicina que transforma o paciente em consumidor, sem ter uma preocupação autêntica para o seu sofrimento psíquico? De feito, é um facto relevante, que o olvido do enfermo, no âmbito da medicina contemporânea parece constituir o “preço a pagar para cuidados (sempre), cada vez mais e mais, racionais e científicos”.
                                    A exploração do corpo humano, o diagnóstico precoce das enfermidades, o encarniçamento/obstinação em as combater por tratamentos dolorosos e invasivos, expropriam (“para o seu bem”), o paciente do seu corpo.
                                    De anotar (antes de mais), que através dos protocolos de diagnóstico e de cuidados (muito estandardizados), através do controlo social das nossas existências por uma vigilância médica incrementada em nome da Saúde Pública, os nossos modos de vida se ressurgem (sempre), normalizados.
                                    Donde e daí: As seguintes (quão pertinentes e oportunos) questionamentos:
                                    --- Como restituir (então) ao paciente o seu valor de sujeito e os seus direitos para evitar o transformar em mercadoria em benefício das indústrias de saúde?
                                    --- Como conciliar as exigências da Medicina científica e a sua necessária vocação “terapêutica” (isto é), humanista?

                                    Eis porque (nesta perspectiva), mais que nunca, os Médicos têm o dever ético e político de estar vigilante contra as derivas e subterfúgios desta medicalização generalizada e a “paixão da ordem”, que (ela) parece ocultar.


(I)
                                    Não há dúvida nenhuma, que a história de uma cultura (o seu ethos do elo/vínculo social), os seus conflitos morais, como as políticas colectivas que (ela) promove podem ser “lidos” nas representações que (ela) se assume da enfermidade e do cuidado respectivo.
                                    De anotar (antes de mais), que o cuidado não releva (unicamente) do medicinal (iátrico). Sim (efectivamente), extravasa (amplamente) sobre o campo terapêutico que drena todas as formas, todas as práticas (em vigor), para se “cuidar de si”, para se ocupar através de (si e o outro) do humano. O humano reconhecido como resquício irredutível em todos os dialectos da espécie, raças, línguas, tradições e costumes.

(II)
                                    Assevera-se (naturalmente), que o valor de uma cultura se avalia (segundo o costume), como (ela) trata as suas crianças e os seus loucos. Poder-se-ia acrescentar a este elenco (identicamente), os seus “enfermos”, tanto se trate de reconhecer (neste ponto), as figuras da “nudez” humana nas formas diversas do seu desprovimento.
                                    De sublinhar, que esta leitura do ethos de uma cultura pode se fazer à partir de representações sociais e científicas que se deduzem (numa época dada), da prevalência de tal ou tal forma de morbidez, designadamente:
                                    Epidemias de peste ou de cólera,
                                    Propagação da sífilis ou da tuberculose,
                                    Enfermidades cárdio-vasculares,
                                    Fomes, doenças cancerosas
                                    Ou (outrossim e ainda): Massacre em série das guerras, holocaustos e outros genocídios, etc.
                                    Todavia, esta leitura do “modo de ser” de uma época pode (ainda), se revelar (identicamente), à partir dos valores ontológicos que através da enfermidade e do cuidado, que uma cultura pode conceder ao humano na sua conexão à espécie.

(III)
                                    Na verdade, se as morais teocráticas ou “laicas”puderam definir um quadro ritual e mítico das práticas individuais ou colectivas da Higiene Pública, na época moderna a Saúde Pública apoiada pela avaliação científica tende a se transformar em “gíria moral”. Em nome de uma “moral do progresso” este “nacionalismo aplicado” postula que do conhecimento científico poderia se deduzir uma moral. Uma moral da “exactidão” vindo se substituir a “verdade” mantida (muitíssimo tempo), sob a sombra levada da religião e do misticismo.

(IV)
                                    No século XVIII, o indivíduo moderno logra arrancar-se da tirania do Sagrado e da autoridade real, para edificar a sua liberdade na Razão. A razão se substitui ao sagrado, em todas as acepções do termo. Disto, recebemos a herança “sem testamento”.
                                    Todavia, se o homem livre se vê alforriado da sua instrumentação pela tirania (ele) se encontra, no decurso dos séculos sequentes “instrumentado” por estas ciências e estas técnicas que tinham tanto contribuído para a sua libertação.
                                    De anotar, que a “essência técnica” dos campos do conhecimento acentua (sempre), a objectivação do ser até o transformar na economia actual do vivo em “mercadoria” em “matéria-prima biológica”, “em peças destacadas” da espécie e em benefício de interesses (identicamente), económicas como políticas.

(V)
                                    Na verdade (e sem embargo), as Ciências do vivo sublevaram as práticas médicas, para o melhor e para o pior, ao ponto que uma “necessidade ética” se impôs (com força), para exigir o respeito pela pessoa e pela dignidade humana (sobretudo e concretamente), após os hediondos crimes cometidos pelos médicos nazis, no decurso da Segunda Guerra Mundial. As diversas declarações e as leis éticas internacionais e europeus atestam acerca desta “preocupação ética” de outorgar cuidados ou de contribuir na sua busca (sem lesar) a pessoa humana (e sem outrossim) recorrer a este arranque de uma mera “preocupação terapêutica”.
                        De anotar (outrossim e, ainda), enfim, que (apenas) esta “preocupação ética”, se inscreveu (desde o seu advento), no âmbito da lógica cognitiva que convocaria (para os devidos efeitos), a necessidade e a urgência da sua implantação. Tudo isto significa, que é (realmente), o consentimento individual que “intima” (sem deferência) para o indivíduo/sujeito político como para o indivíduo/sujeito do inconsciente.
(VI)
                        Antes de mais (vale a pena), sublinhar que (presentemente), mais que nunca o mito do indivíduo se impõe enquanto forma (logicamente), aceitável apto para desautorizar os processos de reificação, instrumentação, manipulação, massificação (social e biológica), que (resumindo, no fim de contas), convocam o risco de um alheamento e de uma aniquilação do ser. Esta forma se impõe como um fetiche e mais (particularmente), um fetiche da forma ameaçada na sua unidade e na sua totalidade simbólica (do mesmo modo que), imaginárias.
                        Donde e daí (então), a amplificação de uma verdadeira ideologia da transparência que vai (a par), com os síndromes de influência, de voo das ideias e de manipulação, como (avisadamente), nos ensina a Psicanálise.

Continua…

Lisboa, 26 Julho 2011

Francisco FRAGOSO (Médico).