quarta-feira, 30 de junho de 2010

Peça ensaística Décima Quarta, no âmbito de

Na peugada de NOVOS RUMOS:

Ser culto es el único modo de ser libre
José MARTÍ (1853-1895)

Posta Segunda:

(1)               A despeito das descontinuidades patentes das ferramentas biológicas e dos etogramas (sendo etograma, o registo pormenorizado do comportamento de um animal) que os indivíduos anímicos exibem, estes mantêm entre si, um diálogo permanente das almas, este comércio inter-subjectivo que edifica o princípio de uma sociabilidade, sem restrições, que engloba humanos e não humanos, na sua universal rede.
(2)               As diferenças de disposições físicas não constituem, de modo nenhum (melhor dito nunca) obstáculo à comunicação e se vêm, em parte, apagadas pelas conexões de pessoa para pessoa, que se estabelecem entre termos supríveis e substituíveis, uns aos outros, visto que situados, num idêntico patamar da escala ontológica.
(3)               Por seu turno, nas cosmologias do animismo, em que entidades de estatuto idêntico se definem pelas posições que ocupam umas defronte das outras, só pode, por conseguinte, haver como relações estruturantes, servindo-se de elos/vínculos potencialmente reversíveis entre indivíduos, humanos ou não humanos, cuja a identidade não está afectada pela realização que os une, ou seja: a predação, a permuta e o dom.
(4)               Muito pelo contrário, as conexões intransitivas do tipo produção, transmissão ou protecção estão condenadas a permanecer marginais, na medida em que pressupõem uma hierarquia entre os termos cuja a disparidade ontológica se tornou, efectivamente pela própria acção, que um exerce sobre o outro, no seio da relação. No dom, na troca e na predação, o sujeito interina um sujeito dependente ou um objecto subordinado.
(5)               De sublinhar, com efeito, que se sabe, que a matéria resiste e que impõe constrangimentos e os seus caprichos ao que a trabalha. É portanto, o agente produtor que é colocado no primeiro plano, quando é dito impor uma forma e uma função específicas a uma matéria desprovida de autonomia afim de produzir uma entidade nova em que é o único responsável, quando muito mesmo, a sua propriedade efectiva lhe escaparia. O objecto resultante desta acção só existe com os seus atributos particulares por essa razão, que uma relação genética fez advir como uma instância reiterada de outras acções semelhantes, informadas pelo mesmo projecto. Eis porque, é impróprio falar de “produção artesanal”, no caso do animismo, pois que os artefactos não constituem nisso realizações ex nihilo, reforçando a posição de sujeito dos que os talham, porém, sujeitos transformados que conservam alguns dos seus predicados de origem.
(6)               Pelo facto do controlo que implica sobre funções biológicas (a reprodução, a alimentação), por intermédio dos quais os existentes se distinguem, uns dos outros, a protecção não pode nunca constituir um esquema geral de relação que convém ao animismo. Despojado da liberdade de se comportar, em tudo, consoante os hábitos físicos da sua tribo espécie, o sujeito protegido perde a sua independência e, finalmente, a sua própria qualidade de indivíduo, ou seja: a protecção só possui, por conseguinte, “direito de cidade” em nichos particulares do animismo e sobre o modo menor (como prerrogativa dos donos dos animais, se estendendo, por vezes, à humanos comprometidos, numa semi-domesticação), sem que se possas excluir que os atractivos que ela exerce (segurança para uns, domínio para os outros), não acabem por lhes dar uma nova ontologia adequada para o seu pleno exercício.
(7)               No atinente à transmissão, meio de garantir e de reproduzir a dependência física e moral dos vivos a respeito dos mortos, ela elimina, logo à primeira, a possibilidade de tratar os animais ou as plantas como sujeitos, visto que toda a sua eficácia assenta na relação de subordinação hierárquica entre as gerações: A coluna vertebral dos colectivos é formada de linhagens de humanos, que não se diferenciam, umas das outras e mantêm conexões, que, por referência exclusiva a grupos de antepassados das quais elas herdam as riquezas, os direitos, as componentes da pessoa e o destino e o fado.
(8)               Vê-se mal, aliás, como uma tal dispositivo poderia se adaptar à enorme sucessão anímica das tribos espécies de indivíduos humanos ou não humanos, os quais se distinguem, pelo contrário, uns dos outros, por disposições em agir/actuar ancorados, numa conformação física que cada geração reconduz ao idêntico afim que se perpetue a variedade dos modos de vida.
(9)               Por seu turno, a transmissão cumulativa e antropocêntrica de substâncias, de patrimónios e de predestinações iria, deste modo, ao encontro da exigência de recriar, a cada instante e, para cada indivíduo, qualquer que seja o seu invólucro físico, as condições de uma existência, sui generis, edificada sobre a interacção com outrem. Eis porque, os mortos devem ser apagados da memória, as suas magras posses destruídas e a tradição que transmitem destacada da sua pessoa.
(10)           E, em jeito de Remate:
a.       Rejeitando ou marginalizando algumas relações, o Animismo desenha, deste modo, no vazio o espaço do que ele recusa: sobre todo o seu território não se encontrará nem elevadores exclusivos, nem castas de artesãos especializados, nem culto dos antepassados, nem linhagens, funcionando como pessoas morais, nem demiurgos criadores, nem gosto para os patrimónios materiais, nem obsessão da hereditariedade, nem flecha do tempo, nem filiações desmesuradas, nem assembleias deliberativas.
b.      Os espíritos perspicazes que repararam estas ausências interpretaram-nas, por vezes, como carências. Não é nada disso, evidentemente.
c.       Todavia, o que é facto, é que o preço a pagar para povoar o Mundo de sujeitos/indivíduos (refazer, todos os dias, a experiência de identidades indecisas), só parece elevado aos que, demasiado fechados no talude, tranquilizando instituições, se contentam medir as promessas do presente pela vara do que o passado nos lega.

Lisboa, 29 Junho 2010
KWAME KONDÉ
(Intelectual/Internacionalista --- Cidadão do Mundo).