Foi publicado hoje no jornal A Semana, de Cabo Verde, o seguinte artigo da autoria da Dra. Vanda Évora. Não resisto a publicá-lo na íntegra e com sublinhados de minha autoria (coisa de que peço desculpas à autora).
Destaco esta frase contundente que não pode ser ignorada:
«NUM ESTADO DE DIREITO, OS RESULTADOS ELEITORAIS NÃO AMNISTIAM NEM FAZEM PRESCREVER OS CRIMES»
ENTÃO, JUSTIÇA?
Não faço parte do grupo que se limita a apontar as desgraças da nossa Justiça. Penso que vamos sobrevivendo apesar delas e ouso afirmar que reconhecer apenas ganhos ou só recuos na sua administração demonstra, no mínimo, uma visão muito redutora da vida e das coisas.
Também é tautológico afirmar que a sociedade cabo-verdiana está cada vez mais complexa e que as mudanças rápidas que a vida actual nos impõe quer no País quer no mundo inteiro levam a que as adaptações sejam muitas vezes dolorosas e imperfeitas. E é neste contexto de grandes desafios e de alguma desorientação que a Justiça também tem que se situar e perspectivar-se e onde todos têm que ser capazes de novos desempenhos técnicos, políticos, sociais e éticos.
Por isso, as críticas que se impõem ao sistema judicial devem ser contundentes mas responsáveis, sem maniqueísmos e desresponsabilização de quem quer que seja, mormente do cidadão. Esporadicamente aparecem cavaleiros andantes (e solitários) mandando bordoadas a torto e a direito que caem fundo na alma de alguns injustiçados mas que ficam por aí. Para quando uma acção concertada para escalpelizar o nosso sistema judicial?
Pois não será exagerado afirmar que a representação tradicional da Justiça em Cabo Verde está em crise, em consonância com o que se passa com a Medicina, a Engenharia, o Ensino, enfim com toda a classe dos doutores, engenheiros, professores, padres e gerentes de bancos. Como refere o Dr. Laborinho Lúcio há que assumir a dessacralização dessas actividades e tirar as consequências que se impõe. De deuses da terra, todos somos, enfim, postos em causa, o que não deixa de consubstanciar uma fase muito interessante da nossa evolução social.
Somos postos em causa mas também nos pomos em causa. Basta ver que até os protagonistas mais reservados do sistema judicial, os magistrados, já se levantaram para questionar publicamente aspectos que consideram relevantes para resolver os estrangulamentos já crónicos do aparelho judicial e os seus problemas de classe, incluindo os mais comezinhos. É bom ter presente que ao pôr em causa o sistema, todos os seus protagonistas também estão a ser interpelados sobre o próprio desempenho e não devem temer a crítica nem se eximir da necessária auto-crítica.
Pessoalmente, sempre esperei por este momento de maturação e os restantes interventores no sistema judicial e os cidadãos não deviam perder esta oportunidade para se pôr os pontos nos ii.
É um momento em que os problemas da Justiça devem ser equacionados conjuntamente com todos os interventores no sistema judicial e instituições que os representam, com o Governo, a Assembleia Nacional, o Presidente da República, a Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde e a Sociedade Civil porque o cidadão tem que se envolver para compreender o que se passa na justiça cabo-verdiana e estar armado para as suas exigências e deficiências.
Não tenho a pretensão de enumerar aqui os imensos problemas da justiça (o jornal não me daria todas as suas páginas).
Permitam-me, apenas, atirar uma pedra no charco pantanoso em que ela se foi transformando:
Entendo que o maior problema do nosso sistema judicial não é ordenamento jurídico (é uma obra humana e imperfeita como todas); não é a deficiente formação humana e técnica de alguns dos seus servidores (estamos todos em aprendizagem contínua, cometendo erros e podendo corrigi-los); não é a falta de instalações dignas (São Vicente foi considerado durante muito tempo uma comarca modelo e é a última que vai ter instalações condignas); não será por falta de meios materiais porque os utentes pagam e muito pelos serviços que demandam, sentindo mesmo que a justiça é tratada como um bem de luxo; não é pelo vencimento dos magistrados (alguns ganham mal pelo que trabalham e outros ganham demais pelo que não trabalham); não é a irresponsabilidade do sistema pelos prejuízos que causa aos cidadãos pelas más e tardias decisões judiciais. Estas são grandes dificuldades do sistema mas, felizmente, sanáveis, se houver vontade política e diálogo, com argumentação racional.
Tenho por mim que o grande problema do sistema judicial reside no facto de se ter generalizado o sentimento de que se deve servir do Direito para ludibriar a Justiça, impunemente. As questões éticas e deontológicas passaram para o último plano. Os valores da liberdade, da justiça, da segurança e da paz social não estão subjacentes em toda a prática judiciária. É pressuposto que a legislação os consagre mas, como toda a obra humana terá os seus defeitos, cabe aos julgadores e aos que demandam a justiça (também com as suas deficiências) fazer o exercício permanente de questionamento próprio e do sistema que não pode fechar-se à sociedade como em tempos idos. Os julgadores, os servidores da justiça e os cidadãos não podem desculpar-se com as condições de trabalho, com leis imperfeitas, com falta de legislação, não podem perder a noção da razoabilidade, do bom senso e do senso comum, do interesse colectivo e do interesse individual e da compatibilização entre estes últimos. A luta entre as garantias e a segurança tem que ser equilibrada, em nome dos valores acima referidos, da liberdade, da justiça, da segurança e da paz social.
Os magistrados, os advogados, os oficiais de justiça deveriam, no mínimo, ter a noção exacta dos factos ilícitos ou criminosos que podem fazer perigar a vida da nossa sociedade.
Deviam ter consciência de que, se o país se deixar enredar pelo narcotráfico, pela lavagem de capitais, pela corrupção generalizada, pelo tráfico humano, pelos crimes ambientais e urbanísticos, os cabo-verdianos (mesmo aqueles que se juntam à criminalidade organizada) deixarão de ter espaço na própria terra, a comunidade internacional vai nos abandonar à nossa sorte, a nossa morabeza e a nossa paz vão acabar.
A Assembleia Nacional, o Presidente da República, o Governo e os cidadãos deste País devem ter presente que os poderes judicial, legislativo e executivo são separados mas interdependentes. Se o poder judicial não responde por si, nós os cidadãos devemos exigir que a Assembleia Nacional, a Presidência da República e o Governo interpelem clara e peremptoriamente os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público para que digam ao País, directamente e sem frases rebuscadas e incompreensíveis para o grande público, o que se passa, efectivamente, com o sector da Justiça e procurem, connosco, a saída para a crise em que ela mergulhou.
E não valem os discursos anuais de circunstância, quer da situação quer da oposição, quer da abertura dos anos judiciais ou os resultados da Africabarometer. A maior parte da população não lida directamente com a justiça mas sente difusa e doridamente a sua acção ou omissão. Faça-se uma sondagem séria entre os actores judiciários e utentes da justiça e terão as verdades, segundo o ponto de vista de cada um, para uma visão global e equilibrada.
Os poderes públicos não podem deixar criminosos à solta, não podem permitir que presos ligados à grande criminalidade sejam libertados pela mais alta instância judicial do País (porque o Supremo Tribunal de Justiça deixa expirar prazos de apreciação de recursos), os poderes políticos não podem fingir que não têm conhecimento de casos de corrupção generalizada, enriquecimentos ilícitos, lavagem de capitais, agora mais nas Câmaras Municipais porque os bancos resolveram apertar em valores elevados, não podem alhear-se de crimes ambientais que acontecem nas suas jurisdições (com única e honrosa excepção do Dr. Vital Moeda, na Comarca do Sal, jovem magistrado, sensato e destemido que nos estimula a continuar a acreditar).
Não podem tomar conhecimento de crimes públicos gravíssimos e olhar para o lado, assobiando, a fingir que nada sabem.
Porque é que não se investigam os sinais exteriores de riqueza de titulares de cargos públicos e certos e determinados privados, sendo conhecidos os montantes dos respectivos vencimentos e rendimentos?
Será que venceu em Cabo Verde a tese de que há que deixar o crime imperar para se criar riqueza? Se sim, o risco é enorme e lamento já por quem tenha que recolher os cacos da nossa miséria moral.
Muitas leis, mal são publicadas, transformam-se em leis mortas, substituídas por um “direito” não escrito que grassa por Cabo Verde. Por exemplo, manda o politicamente correcto que se afirma que o novo Código Eleitoral cumpriu a sua missão, mas todos sabemos o que se passou. Alguém precisa dizer que o rei vai nu!
Em tempo de grande competitividade, de desemprego, de instabilidade económica, financeira e social também ditados pelo que se passa lá fora, a Justiça, mais propriamente os tribunais, não podem continuar a ser um factor de estrangulamento ao desenvolvimento económico e social do País porque incapazes de responder às demandas, com celeridade e competência técnica em várias matérias. Onde estão as assessorias técnicas para que os magistrados decidam competente e coerentemente? Onde está a humildade dos magistrados, dos advogados para reconhecerem que afinal… … só sabem que nada sabem?
Temos que ser razoáveis para reconhecer que a justiça cabo-verdiana é lenta em alguns casos e noutros não. É mais lenta nalguns Tribunais e Procuradorias que noutros. É mais lenta no que tange a determinados processos que outros, por razões também de ordem processual. Pode ser lenta por litigância de má-fé. É lenta porque, por razões várias, só se responde à necessidade de mais juízos, mais magistrados e mais funcionários tardiamente e desta forma não se poderá satisfazer à acumulação que, entretanto, aconteceu. É lenta também porque há magistrados que não trabalham e não há contingentação que resolva este problema se os Conselhos Superiores de Magistratura não agem nem reagem. Penso que a situação deveria ser analisada, nos Tribunais, caso a caso. Com estes problemas, para além da legislação processual civil desadequada, da prática dos advogados, da performance e quantidade dos oficiais de justiça, está relacionada a questão neste momento, muito actual, do estatuto dos magistrados.
É um problema delicado que deve ser tratado com ponderação e que, no meu entender, ultrapassa a esfera de competência político-constitucional, devendo os cidadãos pronunciarem-se também.
Obviamente que todos os advogados e os cidadãos que representam terão muitos casos cuja decisão tarda muito a chegar, sendo alguns até desesperantes. A “culpa” pode ser repartida entre magistrados, advogados, partes do processo, secretarias, peritos, recursos. Há processos que simplesmente emperram (param) e não há explicação que convença o utente da justiça. Outros há que andam sobre rodas. E quando há magistrados com sensibilidade, algumas decisões flúem. Mas se não quiserem produzir ou se trabalharem mal, nada acontece. A justiça estará cansada? O Ministério Público só aprecia essencialmente a pequena criminalidade para não se meter em confusões e só toma conta dos crimes graves, se houver flagrante?
Porque é que finge não ouvir denúncias desses crimes? Essas omissões terão o efeito perverso de fazer recrudescer a criminalidade porque a prevenção geral e a especial não acontecem. O pequeno criminoso que assiste à festa dos grandes é convidado a imitar estes últimos e, literalmente, está a gostar! E convém ter-se presente que, num Estado de Direito, os resultados eleitorais não amnistiam nem fazem prescrever os crimes.
É tempo também de, nos Tribunais e Procuradorias, se começar a trabalhar para os resultados, sem descurar os meios é claro, mas tendo presente que não interessam peças processuais prolixas e bem elaboradas do ponto de vista meramente académico, quando o cidadão precisa compreender o que se passa na justiça e ser capaz de apreender imediatamente o sentido das decisões que lhe digam respeito.
Quem sacode a nossa justiça?