Os tempos não estão para menos: hoje um indivíduo sai de casa e mete-se logo em estranhas, inusitadas e inesperadas aventuras de que pode não sair com vida.
Vinha eu de 24 horas de trabalho. Eram mais ou menos dez horas da manhã quando entrei na Segunda Circular junto ao Nó da Buraca, vindo do Restelo. Era ainda, como é óbvio, hora de ponta em Lisboa e os carros eram mais que muitos naquele entroncamento. Fazendo pisca lá fui demandando a faixa do meio para fugir à da direita (muito concorrida àquela hora por quem ia para Sete Rios) quando um carro novo de gama média se coloca à minha frente e começa a reduzir a marcha até se imobilizar ― em pleno Viaduto da Fonte Nova, cheio de carros a passar dos dois lados ― saindo lá de dentro um sujeito de meia-idade, engravatado e de óculos muito escuros (tipo guarda-costas de líder político: mais ou menos 1,67m, sessenta e tal quilos, cara bexigosa escanhoada) furioso nos gestos (sujeito a ser atropelado a qualquer momento pelos carros da faixa da esquerda) que se me dirigiu com invectivas que não ouvi (tinha o vidro fechado) e aplicou um soco no vidro do meu lado voltando de seguida para o seu popó e arrancando à má fila.
Para ele agir daquela maneira eu devia ter-lhe feito qualquer coisa proibida, do género: levar o meu carro a entrar na faixa do meio à frente do carro dele (há pessoas que não admitem isso de modo nenhum: só se pode entrar na faixa delas atrás do seu carro; à frente nunca!) deve ter sido isso.
Perante comportamento tão louco aconteceu-me reagir, logo depois, como o narrador de “A Queda”, de Albert Camus: comecei a pensar o que eu deveria ter feito com os meus 1,76m e 84 quilos: partir-lhe os óculos e o nariz com uma cabeçada bem calculada; dar-lhe um pontapé nos tomates; agarrar-lhe a cabeça e meter-lhe com força dois dedos nos olhos até fazer-lhe saltar pelo menos um dos olhos cá para fora, etc.
Talvez tudo isso... debaixo de um carro que nos atropelaria pela certa.
E lembrei-me ainda do malogrado filho do antigo futebolista Nelinho, que, não há muitos anos, foi baleado e morto por um automobilista com quem teve um desaguisado de trânsito em Lisboa.
Muito calmo e tranquilo movimentei o meu carro e fui para casa tomar um bom banho, comer um pequeno-almoço substancial, falar com e afagar os meus gatos, e ler uns jornais e blogues antes de voltar a sair.
Mais tarde voltei a pensar no assunto. E imaginei o meu agressor: talvez um indivíduo que vive no Cacém (uma vítima quotidiana do trânsito lento do IC 19); que se mete a comprar tudo o que a publicidade e o modo português artificial de vida o induz a comprar acefalamente, e depois vive a chatice de uma vida de apertos de todo o tamanho que não vê o dia de acabar: pagar as prestações da casa, do carro, das roupas de marca, do computador, dos telemóveis, do TV de plasma, dos leitores de MP3, das viagens, etc. E que depois disso não tem dinheiro suficiente para a comida, a gasolina, o condomínio, as quotas do sindicato, os impostos, a creche, os livros e restante material escolar dos pequenos; que não tem dinheiro para comprar os medicamentos, a fruta, os vegetais e o leite para os filhos; e para pagar o cartão VISA cujo prazo já passou há mais de duas semanas, caramba!
Agora digam-me lá, por favor: um tipo destes tem ou não razão para dar cabo de ― para exterminar ― qualquer um que lhe apareça pela frente?
Bolas!...
Lá disse, e bem, no outro dia, Jorge Coelho que «o país está “crispado”». Pacheco Pereira veio hoje contar-nos que um homem lhe disse num supermercado que “Vai haver uma explosão”.
E eu fui abordado por esse socador “crispado” à procura de “uma explosão”.
Não há dúvida de que isto está perigoso!