sábado, 17 de janeiro de 2009

NEW YORK NEW YORK

A 27 de Dezembro passado elogiei aqui a atitude dos americanos reflectida na forma como o comércio de Nova Iorque reagia face à crise económico-financeira instalada, investindo toda a força do seu talento e toda a sua capacidade de trabalho no sentido da superação da crise, com optimismo quanto ao futuro.

Hoje, ao ler uma das cartas de Eça de Queiroz sobre a New York de 1873, não pude evitar um sorriso de admiração por aquela gente de então e pelo seu povo de agora.

Com efeito, Eça, de férias no Canadá, escreveu o seguinte a Ramalho Ortigão numa longa carta que vale muito a pena ler, datada de Montreal:

[...] De New York dir-lhe-ei — que é realmente a New York da tradição europeia: — a grande, a extraordinária, a estrondosa New York. Na América não se tem esse amor de New York, porque há na União cidades rivais. Filadélfia — é New York sem o deboche. Filadélfia é uma cidade muito moral — dizem aqui os Quakers. Os outros dizem que é simplesmente um alcouce. St. Louis — é outra cidade que não difere de New York — senão em ser mais bela na paisagem. Chicago, — é a todos os respeitos melhor que New York — e é sem dúvida a mais extraordinária cidade do mundo: na carta que lhe escrevi e que V. não recebeu — eu dava-lhe pormenores curiosos sobre Chicago — que é a cidade-resumo do génio inventivo das Populações do Oeste. New York tem mais do que as outras o elemento europeu manifestado por estes factos — lorettes, restaurantes, crevés, escândalos, agiotagem: — é o que a faz superior —. De resto é uma cidade que em parte amo e em parte detesto. Amo-a porque — porque sim: — e detesto-a, porque deve ser detestada. O que isto é — V. não imagina: a violenta confusão desta cidade, o extraordinário deboche, o horror dos crimes, a desordem moral, a confusão das religiões, o luxo desordenado, a agiotagem febril, a demência dos negócios, os refinamentos do conforto material, os roubos, as ruínas, as paixões, os egoísmos — tudo isto está aqui chauffé au rouge. Isto não pode durar, todo o mundo o diz. É uma cidade que tem 100 anos e que está podre, está détraquée. Viveu muito, muito depressa e chegou sem educação. Porque a verdade é esta — New York não tem civilização: a civilização não é ter uma máquina para tudo — e um milhão para cada coisa: a civilização é um sentimento não é uma construção: há mais civilização num beco de Paris do que em toda a vasta New York. Aqui não há gosto nem espírito, nem distinção, nem crítica, nem classificação — nada. Uma sociedade podre de rica, afogada em luxo, exagerando as modas, inventando muitas — e querendo enriquecer mais e ter mais luxo ainda. V. deve ter lido o que se tem passado aqui com o Crédit Mobilier e com outras poderosas associações bancárias, ligadas ao sistema de administração: tem-se apenas descoberto — que os homens públicos de alto a baixo são um rolo de ladrões. Ladrões por toda a parte, eis a crítica da administração. Ladrões por toda a parte, eis a crítica do comércio. Ladrões por toda a parte, eis a crítica das ruas. Ladrões: New York transborda de ladrões, veste-os, exporta-os, vende-os, — e quantos mais enforca, mais lhe nascem. Se você sai do seu hotel e encara algumas das ruas grandes de New York fica aterrado: — aquela agitação, estrondo, ruído, febre, rostos consumidos e secos, toilettes únicas, carruagens nos passeios (trottoirs), ónibus aos lados, caminhos-de-ferro por cavalos no centro da rua, caminhos-de-ferro à máquina por cima das ruas, junto aos tectos das casas, o aparato imenso da polícia, a excentricidade dos anúncios, — o rumor apressado de todo o mundo, — compreende logo — que está num povo bárbaro que aprendeu a civilização de cor. Mas bárbaro como é — que força, que originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza! — É estranho! E ao mesmo tempo que grosseria de maneiras: revólver, praga e empurrão, algumas palavras de inglês e muita saliva — eis o que é a língua americana. — Como eu detesto esta canalha! Como a mais pequena aldeia de França é superior — imensamente superior, — pela sua civilização a esta orgulhosa New York que se chama a si mesma como Roma — a Cidade. Estúpida New York — que fez ela jamais para ser a Cidade? Paris fez a Revolução, Londres deu Shakespeare, Viena deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa deu-nos a nós — que diabo! Mas esta estúpida New York o que tem dado? Nem mesmo as grandes invenções da América são dela. Aqui quem inventa, quem inventa por todos, quem inventa sempre é Chicago. Chicago sim, tem dotado o Mundo com as três quartas partes das máquinas que ele possui. Mas New York? Nunca saiu nada de New York — nem um homem, nem uma ideia, nem um livro, nem uma máquina, nem uma vitória, nem um quadro, nem um dito. New York é um tour de force da brutalidade — nada mais. E no entanto, meu amigo, que diabo — é necessário amá-la. Com as suas grandes avenidas tão cobertas de árvores e de sombras como um bosque, com a beleza extrema das suas mulheres, com as suas grandes praças onde a relva é por si um espectáculo, com as suas igrejas góticas, todas cobertas de trepadeiras e mal aparecendo por trás da folhagem das árvores (jóias de arquitectura contemporânea), New York com seu sumptuoso ruído, com o romantismo dos seus crimes por amor, com os seus parques extraordinários que encerram florestas e lagos — como outros encerram tanques — com a sua originalidade, com a sua caridade aparatosa, com as suas escolhas simplesmente inimitáveis — os seus costumes — os seus teatros (aos 4 em cada rua) — é uma tão vasta nota no ruído que a humanidade faz sobre o globo — que fica para sempre no ouvido. Eu estou aqui a escrever-lhe — e está-me a lembrar com saudade — o rolar dos tramways nas ruas. — Querida New York! — não odiada New York! [...]

BOM DIA e BOM FIM-DE-SEMANA