domingo, 28 de dezembro de 2008

VERGÍLIO FERREIRA

É impressionante a cara serena do doente que veio comigo e com o médico.
― Trouxe a radiografia?
― Trouxe-a a mulher, senhor doutor.
A mulher veio a pé, a camioneta custava três escudos, era dinheiro. Fui encontrá-la no hospital, eu queria almoçar e o meu amigo médico não vinha.
― É um instante, o homem ainda não fez o pneumo. Você pode entrar.
Cá fora a mulher olhava consternada com um rosto pálido e negro. O homem estava deitado, sem acção. Picaram-no cinco, seis vezes por causa das aderências.
― Dói?
― Nada não, senhor doutor.
― Esteja sossegado.
Tinha remendos nas calças e as botas gastas. O ar finalmente entrou. Depois foram vê-lo à radioscopia, ele sempre calado e passivo. Vestiu-se, tomou o guarda-sol.
― O tratamento, claro, fez-se de graça ― dizia-me o médico ―, mas o homem precisava era de comer. E já vê você, isto é um círculo vicioso: para comer tem de trabalhar, trabalhando não se cura.
Fomos encontrá-lo com o guarda-sol entre os joelhos, sentado no banco de trás da camioneta. A mulher já vinha a caminho embrulhando a radiografia no xale. Passámos por ela numa nuvem de poeira.
[Vergílio Ferreira in "Diário Inédito" – Bertrand Editora]

Isto foi em 1945; mas ainda hoje acontecem coisas semelhantes um pouco por este Portugal fora. E não só nas aldeias mais remotas e de difícil acesso. Em plena Lisboa há muito quem, quotidianamente, revela enormes dificuldades para se tratar. Eu já paguei algumas vezes a taxa moderadora a utentes do SNS porque senão iriam para casa sem a consulta porque não tinham dinheiro para nada ― na carteira apenas o passe do autocarro, de resto, o vazio impressionante do couro envelhecido ― já viram coisa mais desoladora que uma carteira vazia? Eu não!

Mas nós estamos aqui a dar atenção a este assunto e afinal temos a internet, o televisor panorâmico de alta definição, o blu-ray Disk e a Playstation3; o Hi-Fi, o PC e os telemóveis (um para cada operador); várias máquinas fotográficas digitais e uma colecção de relógios de maquinaria autêntica (nada de relógios electrónicos); e temos aquecimento no inverno e ar condicionado no verão; e bebidas boas escolhidas por enólogos do nosso clube de vinhos e enviadas para nossas casas com o pagamento a ser feito por débito no cartão VISA; temos o médico à distância de um telefonema, quando não no quarto ao lado ou mesmo dentro de nós; ligamos o PC e acedemos logo às nossas contas bancárias, puxamos o MBNet e fazemos uma compra segura online que nos há-de chegar a casa dentro de 48 horas trazida pela UPS ou a DHL; temos a FNAC, a Livraria Letra Livre e a Amazon que nos mandam os livros, os CDs e os filmes para casa, pelo correio; vivemos escandalosamente bem e permanentemente em pecado e nem por isso estendemos a mão a quem mais precisa; não abdicamos do mais pequenino conforto em favor do outro; estamos no partido, no parlamento ou no governo ― num lugar qualquer razoavelmente ou bem remunerado ― e esquecemos que lá na aldeia, no bairro ou mesmo aqui ao lado em Lisboa, há pessoas, há concidadãos que não têm nada de nada senão uma carteira vazia ao fim de uma vida de trabalho.

Eu sei que há muito quem tenha culpa de ter a carteira vazia; mas não é desses que eu falo; falo dos que sempre trabalharam e nunca nada tiveram. Isso é culpa nossa.

Somos uns verdadeiros nababos dignos desta enorme crise que fabricámos e que nos deveria fazer cair das nuvens ou engolir-nos a todos para que o mundo fosse mais justo. Mas acreditamos que isso não vai acontecer. Temos a nosso favor a Justiça, o poder do Dinheiro, a posição social e o estatuto profissional conquistado.

E a nossa consciência, como é que está?!...