INTERVENÇÃO VIGÉSIMA NONA:
“Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos
Em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o
Mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo
Porque sabemos que outro é possível. Mas cabe a nós construí-lo
Com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida”.
Augusto Boal, director artístico brasileiro, inventor do
“Teatro do Oprimido”
In Mensagem Internacional do Dia Mundial do Teatro
Para o Ano de 2009.
Estudando, de forma dialecticamente consequente, os Eventos enformando a crise económico-financeira hodierna, somos coagidos a afirmar pertinentemente que a crise financeira que se declarou em Agosto de 2007 acrescentou um quinto episódio dramático à aventura financeira engagée au tournant dos decénios de 1970 e 1980.
Todavia e, antes de mais, sobretudo por imperativo didáctico-pedagógico, se impõe recordar, para principiar adequadamente esta nossa “posta”, os quatro episódios precedentes, a saber:
1) Craque bolsista em Outubro de 1987;
2) Crise europeia das permutas, em 1992 e 1993;
3) Crise dos pagamentos externos na Ásia, na Rússia e no Brasil, em 1992;
4) Nova crise bolsista ampla e profunda, vinculada à crise dos valores da Internet, em 2000 e 2002.
E, por razões e motivos assaz óbvios, se nos afigura, quão oportuno e percuciente, descrever a derradeira metamorfose do sistema financeiro desacreditado estes últimos tempos pela crise do mercado hipotecário norte-americano. Esta metamorfose coroa, não só provisória como quiçá, porque não definitivamente, a evolução sem freio que levou a recobrir o Planeta de dezenas de milhares de operadores que levam a vida, assumindo riscos quotidianos sobre as flutuações de activos financeiros de todas espécies. De elucidar avisadamente que assumiu a sua forma à partir das bases anteriores, apoiando-se na política de crédito, a mais laxista que tenha sido aplicada desde o término das hostilidades mundiais, sob a impulsão conjunta dos grandes bancos centrais, dos bancos comerciais e de negócios, das sociedades especializadas no crédito aos privados. Por seu turno, a crise actual revela disso os perigos e, concomitantemente, outrossim os maquinismos. Todavia, esta metamorfose e as suas atribulações recentes nos obsequiam com o ensejo e a oportunidade respectiva, para extrair um ensinamento de alcance geral, independente dos vícios de funcionamento do sistema financeiro.
Antes de mais, se impõe, evidentemente, consignar que este sistema financeiro, em apreço e análise, que preconizava reduzir o recurso ao crédito e apoiar, mais amplamente, o conhecimento económico acerca dos recursos da poupança, desdobrou os recursos ao empréstimo, sob fórmulas desconhecidas e em proporções até aqui inauditas.
Demais, outrossim e, ainda, jamais o acto de se expor à dívida, não foi tão elevado; jamais as economias haviam assentadas sobre um “apport” crescente de dinheiro oriundo do sistema bancário e dos bancos centrais que o sustentam, obviamente. O efeito de alavanca logrado na produção e na especulação pela disponibilidade de dinheiro “fresco” encontra-se no seu máximo histórico quando as ausências de pagamento dos lares norte-americanos sabotaram a confiança dos mercados internacionais do crédito.
Deste modo, evidentemente (melhor dito, aliás), no âmbito desta dinâmica, legítimo se afigurou asseverar, sem rebuço, que a experiência do último quartel do século XX pretérito terminou por renegar integralmente todos os seus fundamentos intelectuais de origem. Demais, por outro, a estulta atitude de voltar à carga da bolsa, decidida, visando reforçar os capitais próprios das empresas cotadas, desembocou na sua descapitalização reclamada pelos grandes accionistas do mercado. Eis porque, a reabilitação dos economizadores, cujo apport financeiro era reputado vital para o investimento, dissimulou um fenómeno oposto de endividamento dos lares, vindo suprir o crescimento insuficiente de rendimentos, fenómeno de endividamento do qual a crise do mercado hipotecário norte-americano proporcionou um doloroso sintoma. De anotar, enfim, que a gestão financeira dos Estados endividados pelos seus mutuantes dos mercados obrigatórios se revelou inoperante do facto da presunção de solvabilidade absoluta da qual continuam beneficiar os Tesouros públicos dos países ricos. Tudo isto principia, aliás a saber-se e o lustro cujos os mercados financeiros tanto beneficiaram se põe enfim a ofuscar. Donde e daí, então, efectivamente constituir a dívida e não a poupança, o fundamento real da expansão do capitalismo contemporâneo.
E, prosseguindo sagazmente o nosso estudo, se nos antolha pertinente, consignar que a expansão incessante e perseverante do crédito, o seu desdobramento respectivo assentam na possibilidade outorgada de o garantir por intermédio de activos. E, a título de elucidação eloquente, vale a pena, esclarecer que a expressão inglesa “Asset backed securities” serve para designar um dos procedimentos financeiros que estimulam a expansão indefinida do crédito.
Por outro, outrossim e, ainda, de assinalar os empréstimos contraídos são garantidos por o que eles permitem comprar, nomeadamente: os empréstimos hipotecários pelos imóveis, os empréstimos dos correctores de bolsas pelas acções que adquirem, as transacções sobre a dívida pública pelos títulos desta dívida, etc.
Finalmente, no fundo, no fundo, tudo isto significa que não é a solvabilidade pessoal do mutuante que se encontra na base da confiança dos mercados de empréstimos, sim, efectivamente toda a quinquilharia imobiliária e financeira que permitem adquirir, quer para uso económico trivial, quer para um fim meramente especulativo.
E, em jeito de remate consentâneo, na verdade, é este fenómeno central ora expendido, que a crise financeira do Verão de 2007 revelou, enfim a um vasto público. Demais, de sublinhar adequadamente que esta crise em apreço é o resultado de um craque do crédito. Explicitando, vale a pena recordar, que existe craque quando, num mercado, os compradores se esquivam ante os bens que lhes são propostos, designadamente: craque bolsista quando as acções cotadas, na sua grande maioria, abandonadas pelos compradores potenciais; craque imobiliário quando os imóveis vetustos ou novos já não encontram arrendatários; craque do crédito quando os títulos de dívidas emitidos pelos mutuantes são rechaçados pelos seus emprestadores habituais. Não deixa de ser bastante pertinente elucidar que o craque do crédito representa “un cas de figure” que convém, ipso facto, não confundir com o fenómeno denominado credit crunch. De anotar, que neste último caso, a massa dos empréstimos novos torna inferior ao montante dos empréstimos antigos efectivamente reembolsados. Existe, outrossim, contracção do crédito, porém o mercado continua preenchendo a sua função habitual.
Demais, por outro, a despeito dos riscos de abrandamento económico provocado pelo credit crunch, os bancos centrais não têm motivo para intervir, no caso de urgência, salvo aquando dos seus encontros respectivos, na data estabelecida com os bancos, sob a forma de adjudicações hebdomadárias de moeda, em função da procura expressa pelos bancos comerciais, pois que preservam uma lata faculdade de apreciação e de acção. Aliás, podem inteiramente afinal deixar se operar durante algum tempo a contracção do crédito que tentar remediar a situação, adoptando uma política monetária mais favorável ao sistema bancário. Eis porque, as suas intervenções inopinadas e maciças, a partir de Agosto de 2007 até aos derradeiros dias do ano, só se podem se justificar a contrario pela “détresse” de numerosos mutuantes cujos os títulos eram rejeitados, frequentemente a despeito da reputação excelente da qual usufruíam antes no mercado.
Lisboa, 25 Março 2009
KWAME KONDÉ
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