sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

KWAME KONDÉ

INTERVENÇÃO VIGÉSIMA QUARTA:

(a) Desde os primórdios da Organização, a discriminação e, mais particularmente a racial, constituiu uma enorme preocupação da UNESCO. Todavia, foi necessário decorrer, aproximadamente três decénios para que a Assembleia-geral da UNESCO adopte uma “Déclaration sur la race et les préjugés raciaux” (1978). Porém, antes desta data, quatro consultas importantes foram organizadas, cada uma culminando numa “déclaration” de peritos (statement). De anotar, que enquanto tais, estes documentos não constituem declarações oficiais da UNESCO, ratificados pela sua Assembleia-geral. Possuem o valor de opinião, por certo públicos e publicados, porém estes só possuem valor de documentos preparatórios elaborados por comités de peritos, como se requer UNESCO.

(b) Explicitando: As duas primeiras declarações de peritos foram elaboradas em 1950 e 1951, respectivamente, sendo, demais duas outras publicadas em 1964 (“Propositions sur les aspects biologiques de la question raciale-Moscou, août 1964”) e 1974 (“Déclarationsur la race et les préjugés raciaux-Paris, septembre 1967”). Trata-se esta última de uma declaração de peritos. Por seu turno, a declaração oficial de 1978, que em francês ostenta o mesmo título, é feita de um texto dissemelhante, redigido no estilo característico dos juristas. E, no atinente às versões inglesas elas permitem evitar o equívoco, ou seja: em 1967, o título é “Statement on race and racial prejudice”; em 1978, “Declaration on race and racial prejudice”. Como se pode aperceber, esta fórmula chama a nossa atenção, uma vez mais, acerca do género peculiar das opiniões e das declarações, obviamente.

(c) Posto isto, o Texto de 1951 se diferencia no que foi explicitamente preparado e apresentado como uma rectificação, por biólogos, da opinião redigida por um grupo de antropólogos. De anotar, que os dois textos de 1950 e 1951, respectivamente, tinham idêntico objectivo. De feito, o facto de ter havido duas declarações, de preferência, antes que apenas uma, reflecte uma discrepância existente entre especialistas das ciências sociais e biólogos acerca da problemática da raça, ou mais exactamente, um efeito de concorrência entre dois campos disciplinares, quanto ao dos dois que dispunha da linguagem cientificamente apropriada para falar, consentânea e adequadamente, do assunto, em análise e apreço.

(d) De consignar, outrossim, que as duas declarações estão sobremaneira próximas, no atinente ao seu conteúdo respectivo. Com efeito, as duas declarações se abrem com uma frase, asseverando que os “savants” reconhecem, em geral, que todos os membros da espécie humana pertencem à mesma espécie. Demais, uma e outra sublinham que as raças, de um ponto de vista biológico, devem ser interpretadas como populações em evolução e parcialmente isoladas, cujas as diferenças são descritíveis, em termos de frequências genésicas. Uma e outra rejeitam a equivalência das noções de cultura e de raça, minimizam (sem totalmente, aliás excluir) a ideia de uma determinação genética das dissemelhanças culturais, explicando estas pela história cultural, peculiar e sui generis, dos grupos e asseveram que as classificações raciais devem ter em conta características físicas e, ipso facto, não diferenças psicológicas ou culturais.

(e) E, prosseguindo, avisadamente, temos então, que se afigura pertinente informar que o antropólogo e humanista inglês, Ashley MONTAGU (1905-1999), que presidiu, aliás, os dois comités de 1950 e 1951, respectivamente reproduziu as duas declarações na quarta edição do interessante livro: Man’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race. Atribui, com efeito, a primeira declaração a especialistas das ciências sociais (“social scientists”) e a segunda a especialistas de ciências naturais (“natural scientists”), acrescentando o seguinte: “O leitor verá que existe um acordo acentuado entre os primeiros e os segundos”. Por seu turno, identicamente, o professor norte-americano, Leslie DUNN, que teve a responsabilidade de coordenar a redacção da declaração de 1951, explica numa introdução redigida pelo seu próprio punho, que o texto de 1951 contem as principais conclusões da declaração de 1950, porém “atenuando determinadas afirmações e, procedendo a importantes supressões”.

(f) Elucidando adequadamente, se impõe formular a seguinte questão. Ou seja: Quais são, por conseguinte, as diferenças entre as duas declarações?
---Em primeiro lugar, se observa que a estrutura do texto é dissemelhante: os pontos evocados, mais acima, são apresentados e agrupados numa ordem um pouco diferente. Demais, determinados pontos são evocados mais rapidamente, outros mais desenvolvidos. Por exemplo, a declaração de 1951 contem extensas passagens acerca do problema das do ponto de vista da genética das populações e sobre a questão da hereditariedade dos caracteres psicológicos, entre os indivíduos (uma evidência para o comité de biólogos de 1950) e entre raças (noção problemática).
---Os dois documentos apresentam, outrossim dissemelhanças estilísticas. Neste sentido, se verifica que em 1950, o estilo dos antropólogos é dogmático, enfático, viçoso. Já em 1951, o dos biólogos privilegia a crítica factual e retórica. De anotar, que se ignora aqui este aspecto retórico, conquanto reflicta um aspecto sociologicamente essencial do debate, o de uma concorrência entre dois grupos profissionais que participavam num idêntico combate ideológico anti-racista, defendendo, porém, outrossim o seu estatuto de peritos.

(g) No atinente, ao ponto de vista do conteúdo, a declaração de 1951 se distingue da de 1950 por dois cortes. Um diz respeito à passagem terminal que explicava que os seres humanos, instintivamente conduzidos à cooperação e à fraternidade, deveriam desenvolver “uma ética da fraternidade universal”.
De consignar, que os biólogos do segundo comité apenas apreciaram uma tal exortação moral, sobre a qual estavam, todavia de acordo, quer apresentada como um mero corolário das “investigações biológicas”. No que, aliás, tinham, sem dúvida razão.

(h) A segunda diferença de conteúdo entre as duas declarações é mais discreta, porém essencial. Diz respeito à pertinência do vocábulo “raça”no caso concreto da espécie humana. De sublinhar, que o texto de 1950 continha duas interessantes frases, que vamos transcrever a seguir:
---“Les graves erreurs entraînés par l’emploi du mot “race”dans le langage courant rendent souhaitable qu’on renonce complètement à ce terme lorsqu’on l’applique à l’espèce humaine et qu’on adopte l’expression « groupes ethniques. »
--- « Il convient de distinguer entre la « race », fait biologique, et le mythe de la race ». En réalité, la «race » est moins un phénomène biologique qu’un mythe social. »

Finalmente, de consignar, de forma consentânea, que, de feito, a segunda declaração de 1951 não faz, de modo nenhum (absolutamente nada) alusão à ideia, segundo a qual o conceito da raça, por mais delicado que seja, não poderia possuir nenhuma pertinência para a espécie humana. Eis porque, se preserve sobremodo proscrever o vocábulo “raça” no caso concreto do Homem.

Lisboa, 26 Fevereiro 2009
KWAME KONDÉ
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