INTERVENÇÃO DÉCIMA NONA:
Elocubrando sobre a Excisão em França:
(1) A excisão consiste, grosso modo, na ablação cirúrgica do clítoris. É praticada nas raparigas, por vezes muito jovens, por numerosas sociedades africanas. Determinadas minorias emigradas a praticam no território francês. Efectuada ilegalmente, no quadro doméstico, por matronas, acontece que a excisão se solda por complicações, necessitando uma hospitalização de urgência, causando, até mesmo, o óbito à criança. Donde e daí, que os pais e a matrona são então inculpados por lesões, tendo acarretado a morte, conquanto sem intenção de a provocar, sendo, no entanto, citados judicialmente.
(2) No Tribunal, duas culturas se defrontam. Por um lado, uma Cultura da tradição, com o seu direito próprio e peculiar, edificado na autoridade dos antepassados e nos usos e costumes. Do outro, uma Cultura dos direitos da Pessoa, herdada do universalismo das luzes, que considera a excisão como um dano/prejuízo à integridade corporal (não consentido) e, por isso, a qualifica de crime. Em contrapartida, em virtude do direito consuetudinário, a família vê na excisão uma prática necessária para benefício e felicidade da criança, porquanto confirma a jovem rapariga na sua identificação feminina e, consequentemente na real pertença ao grupo respectivo. Destarte, o consentimento da família, em particular da parte das mulheres, é, quase sempre (aliás, a maior parte das vezes) afirmado, facto que complica singularmente o problema.
(3) De consignar, que no âmbito desta dinâmica, os etnólogos são convocados em tribunal criminal, como peritos, pois sabem que a excisão faz parte das práticas de escultura do corpo testemunhadas em numerosas sociedades da tradição: implantes cutâneos, escarificações, tatuagens, limagem ou extracção dos dentes, perfuração do nariz, das orelhas, dos lábios, elongação do crânio, do pescoço, das orelhas, mutilação das mãos ou dos pés. De anotar, outrossim e, ainda, que os órgãos genitais, estar-se-iam, neste sentido, decerto dotados. Eis porque, são particularmente eleitos: perfuração do pénis destinada à receber um broche, subincisão, circuncisão, podendo ir até à escoriação do pénis em todo o seu comprimento, infibulação do sexo feminino, excisão, elongação dos pequenos lábios.
(4) De feito, na verdade, o Corpo é um suporte ideal para aí inscrever a identidade e a diferença. De salientar, que estas práticas, ora evocadas, conquanto, mais ou menos, perigosas, dolorosas e, assaz mutiladoras são, contudo, identicamente estruturantes, para o indivíduo e para o grupo respectivo, obviamente.
(5) Todavia, asseverar que são estruturantes e identificadoras não significa, bem entendido, que se as aprove. E, precisando, um pouco mais, a situação vem mesmo à propósito, trazer à colação, as posições extremas que se digladiam, no âmbito desta matéria. Ou seja:
(a) Os defensores do “relativismo cultural”, como determinados antropólogos norte-americanos dos anos trinta do século XX pretérito, para quem não existe nenhum ponto de vista transcendente, permitindo avaliar as culturas, de molde que todas se valem do momento que preservam a sua pregnância.
(b) Noutro extremo, temos, então, por seu turno, os juristas ocidentais contemporâneos argumentando que a invenção do “direito internacional” pela escola de Salamanca e Bartolomeu de Las Casas após a conquista espanhola do Novo Mundo, assim como a Filosofia das Luzes e a Declaração universal dos direitos do Homem (1948) fornecem as bases jurídicas de uma condenação universal destas práticas. Deste modo, na opinião deles, só o respeito destes princípios universais pode garantir à Humanidade um porvir que não seja demasiado sombrio.
(6) Enfim, no atinente ao debate respeitante às mutilações sexuais, em si, não deixa de se afigurar pertinente, ponderar o seguinte: Efectivamente, quais são as suas implicações quanto a relações entre homens e mulheres, assim como, qual a contribuição de um e o outro sexo na prossecução da sua prática? Outrossim e, ainda, quais são os desafios do poder e de domínio entre os sexos, as pessoas, os grupos e as nações, que violam os termos da Declaração, sempre a apelar para diferenças religiosas ou culturais, não obstante, quão notáveis e respeitáveis? Como se pode ver, os reptos são, não só, bastante numerosos, como, outrossim sobremaneira fascinantes. E, numa avisada asserção: estão, na verdade, os ditos reptos indissociavelmente mesclados às diferenças sociais e culturais.
(7) E, rematando pertinentemente, com efeito, numerosos são os (educadores, trabalhadores sociais, juristas, etnólogos, movimentos de defesa das mulheres), que, sempre, condenando a excisão e as práticas mutiladoras, desejam, entretanto, que sejam descriminalizadas e requalificadas como meros e simples delitos. Isto teria por consequência não converter em criminosos, pessoas que seguiram as prescrições da sua cultura, provisora esta de eloquentes referências existenciais.
Lisboa, 25 Janeiro 2009
KWAME KONDÉ